O MAR É AZUL


            _ Cuidado, Pablo, eles podem pegá-lo.
            _ Não vão me pegar, conheço um caminho alternativo.
            Não adiantou. Pablo não podia imaginar que os soldados vigiavam cada passo seu depois que ele saíra da casa de Juan. Fora preso uma vez pela polícia chilena por opor-se ao estado. Por estar documentada sua prisão e a sua liberdade, ele acreditava, ingenuamente, que os militares não seriam tão ousados a ponto de prendê-lo uma segunda vez. A imprensa internacional acompanhava o seu caso de perto, ele era um porta voz da esquerda para o mundo contra o regime do ditador Augusto Pinochet no Chile, e sentia-se mais protegido do que os outros. Engano.
            As ruas de Santiago estavam vazias, o toque de recolher imposto pelo exército fazia com que as pessoas tivessem medo até mesmo de olhar pela janela das suas casas, Pablo sabia que estava desafiando a ditadura ao sair da casa em que ficava o partido e seguir para a casa da sua mãe. Era madrugada e não se via ninguém. Ele seguia um caminho alternativo, esquivando-se dos soldados que surgiam patrulhando as ruas nos jipes e caminhões.
            Numa esquina, procurando esconder-se de um grupo de soldados do outro lado da avenida, Pablo foi seguro no braço, voltou-se e viu-se cercado. Foi pego pela segunda vez.
            _ Nós já estávamos atrás de ti há um bom tempo, Pablito.
            Era o sargento Guzmán, um cruel militar que o torturou pessoalmente nos dois dias em que ficara preso. Pablo congelou, o medo tomou-lhe por inteiro. Não havia muito o quê fazer, estava nas mãos dele. Tentar fugir? Impossível.
            _ Tu tens sorte, Pablito! Acabas de ganhar uma passagem de avião. Para onde queres ir? Queres visitar os picos andinos ou preferes ir às ilhas do Oceano Pacífico?
            _ Qual a minha alternativa? Vou onde quiseres que eu vá. Mas saibas que isto não ficará impune, um dia tu irás pagar por isto!
            O sargento gargalhou.
            _ Quem haverá de punir-me?
            Em sua casa, não muito distante dali, María, sua mãe, rezava, aflita pela demora do filho. Pedia aos santos que intercedessem e protegessem o seu filho mais novo, o único que se envolvera com a política. Rezar, rezar e rezar. Nada mais havia para uma mãe temerosa fazer neste tempo cruel.
Diego, o marido, ao lado, fumava um cigarro atrás do outro, também estava ansioso aguardando a chegada de Pablo. Ficava ao lado da janela, com as luzes da sala apagadas, às vezes, puxava a cortina e olhava para a rua, como se o seu olhar pudesse acelerar os passos do filho. Aguardava.
            _ Eu quero sair para procurá-lo. Aqueles malditos!
            _ Não vá, Diego, por favor! Podem matá-lo.
            _ E ficar aqui? Aguardando este menino? E se nunca mais o virmos? E se desaparecerem com ele?
            _ Talvez tenha dormido na casa de um amigo com medo do toque de recolher.
            _ Não. Se tivesse, teria ligado. Ele se acha muito protegido porque a imprensa o trata como herói, ele não sabe com quem está envolvido, estes militares, malditos! Estão matando os nossos filhos e nós estamos aqui, morrendo de medo também!
            _ Temos outros filhos, temos que cuidar de todos.
            _ Mas eu não quero perder nenhum! Quero todos os meus filhos vivos e aqui comigo!
            Diego sentia-se enraivecido com o golpe militar. Viver num país em que não há liberdade, em que alguns acham que são donos da vida do povo. Se ele pudesse, pegaria em armas para matar o ditador, mas se sentia incapaz, os soldados estavam por toda parte. Queria ir atrás de Pablo, bem que ele sempre achou que o mais novo era muito atrevido, sempre tem alguém mais ousado, mais falador, mais exagerado! O seu tão querido Pablito! Por quê ele?
            _ E aí, já se decidiste? Queres conhecer o mar ou a montanha? – dizia o sargento Guzmán.
            Pablo agora encontrava-se num porão em alguma delegacia de Santiago, amarrado e suspenso por grilhões.
            _ Eu não quero nenhum lugar, quero apenas que me deixes ir para minha casa!
            _ Ora, ora! Viste onde estás?
            _ Sim, e aliás, quero saber do registro da minha presença, não registraste meu nome no livro! Não me mandaste assinar a minha entrada!
            O sargento Guzmán investiu-se de ferocidade.
            _ Não há registro nenhum para ti, caro Pablo! Não há entrada porque tu estás morto, teu próximo registro é no cemitério de La Consolación! Acaso aguardas algum milagre?
            Pablo ficou quieto.
            _ Lembras da última vez que estiveste aqui?
            _ Sim.
            _ Não gostei do que tu falaste de mim para os jornalistas! Tu precisas de uma lição para calar esta boca!
            Então, o sargento tomou de um chicote, mandou que um soldado arrancasse a camisa de Pablo e começou a chicoteá-lo, ele suportava a dor, calado, não queria dar o gosto ao sargento de ouvir seus gritos.
            María rezava.
            _ Nosso pobre, Pablito! Que Deus olhe por ele!
            E ela chorava baixinho, o que irritava Diego.
            _ Eu vou à delegacia! – decidiu-se o pai.
            _ Não vá, Diego, você poderá morrer, temos outros filhos, não quero que fiquem todos sem pai.
            _ O que é um pai se ele não puder cuidar de seus filhos? Preciso encontrá-lo, em breve, o toque de recolher acaba e não haverá mais perigo.
            E Diego vestiu o sobretudo, colocou o velho chapéu, abriu a porta, o frio da madrugada entrou na casa e entristeceu María, ele acendeu mais um cigarro, deu uma baforada e disse:
            _ Vou trazer Pablito, custe o que custar!
            Sumiu na névoa da madrugada. Maria ficou a rezar pelos dois, pai e filho, agora mais distantes do seu coração como nunca estiveram antes.
            A delegacia era distante da casa de Diego e este caminhou por vielas pequenas e sem policiamento, evitava que os soldados o vissem, sabia que, próximo à delegacia, ninguém era preso porque havia um grande hotel em frente, em que jornalistas estrangeiros faziam plantão. O frio cortava o seu rosto. Queria encontrar seu filho, não poderia viver tranqüilo, fora tomado pela coragem, não tinha medo do governo e nem de ninguém mais.
            Depois da pequena sessão de tortura, o sargento Guzmán colocou Pablo dentro uma cela apertada em companhia de outros presos, ele caiu no chão sangrando. Edgard, um dos presos, reconheceu o amigo e foi auxiliá-lo.
            _ Vamos, Pablo, coragem, logo sairemos daqui.
            _ Edgard! Em que luta nos envolvemos? – Pablo falava com dificuldade sentindo as dores das chicotadas.
            Outros presos estavam em silêncio. Sentiam todos o mesmo drama e estavam ali pelo mesmo motivo. Eram contra o regime e, portanto, contra o país, na interpretação dos militares. A cela imunda, sem lugar para dormir, com uma pequena privada que exalava o cheiro de podridão pelo lugar úmido e mofado. Uma pequena lâmpada no corredor, presa em fios elétricos desencapados, era a única luz que tinham.
            Pablo sentou-se no chão sujo e Edgard ficou ao seu lado.
            _ Nós vamos vencer, Pablo, tenha coragem.
            _ Com que forças, meu amigo? Estamos presos, incomunicáveis! – naquele momento, Pablo sentia que a luta estava perdida e desacreditava do ideal libertário.
            _ Há outros lá fora, articulam com governos de outros países, estão denunciando as torturas deste ditador, o regime não poderá suportar a pressão internacional.
            _ Mas, Edgard, o golpe foi apoiado pelos Estados Unidos, quem vai ser contra a maior potência do mundo? Achas mesmo que a União Soviética está preocupada com nosso país?
            _ Está sim. Antes de eu ser preso, falei com agentes de Cuba, Fidel está do nosso lado, treina nossos homens para a luta, nós ainda venceremos.
            _ Eu queria estar em casa. Deveria evitar sair durante o toque de recolher. Agora estaria com meus irmãos e meus pais...
            _ Tu voltarás, confie! Em breve, estarás em casa!
            Mesmo naquele lugar pútrido, com o cansaço e dor causados pela tortura, Pablo adormeceu, ou melhor, desmaiou de exaustão.
            _ Senhor delegado, meu filho está desaparecido, vim registrar queixa, a polícia tem que procurá-lo.
            _ Sim, senhor ...
            _ Gutierrez, Diego.
            _ Senhor Gutierrez, como chama seu filho?
            _ Pablo Gutierrez Paniágua, senhor.
            _ Vamos registrar sua queixa, o senhor deve aguardar que a polícia entre em contato. Assim que encontrarmos seu filho, certamente o levaremos à sua casa.
            Era o máximo que a polícia se dispunha a fazer. Diego, insatisfeito, ainda durante o toque de recolher, saiu a procurar por Pablo em todas as casas dos amigos do filho. Batia em cada uma delas, as pessoas, assustadas, atendiam apenas com uma pequena abertura, algumas, apenas pela janela, de casa em casa, as respostas, negativas, ninguém sabia dele. Até que bateu na casa de Juan.
            _ Pablito saiu daqui, faltavam três horas para o toque de recolher acabar, falei-lhe que era perigoso, para esperar amanhecer, mas ele insistiu em ir embora.
            Era uma esperança, Diego refez o caminho até sua casa, tentava imaginar por onde o filho teria andado, o toque de recolher tinha acabado e muitas pessoas começavam a sair de suas casas, uns a trabalhar, outros a buscar pão e leite. Carros do exército passavam, alguns caminhões cobertos com lonas e recheados de soldados patrulhavam as ruas.
            Dois soldados caminhavam em patrulha, um deles reconheceu Diego.
            _ Senhor Diego, o que fazes por estas ruas!
            _ Procuro Pablito, meu filho! Tu o viste?
            _ Não senhor, mas soube que houveram muitas prisões esta noite, muitos desobedeceram o toque de recolher. Vá ao quartel e procure o sargento Guzmán, ele tem uma relação dos presos, se teu filho estiver entre eles, será solto ainda hoje após assinar os papéis.
            E Diego correu até o quartel. Foi atendido por um soldado.
            _ Bom dia, procuro o Sargento Guzmán! Procuro meu filho que desobedeceu o toque de recolher, quero saber se ele está preso!
            Por acaso, o sargento Guzmán estava perto a tomar um café quente e comer bolachas.
            _ Senhor, sou o Sargento Guzmán! Como chama seu filho?
            _ Pablo Gutierrez Paniágua.
            _ Sim, Pablo Gutierrez! – o sargento fingiu olhar uma lista - Não! Não está na lista. Talvez esteja na casa de algum amigo.
            _ Não está senhor.
            _ Se o encontrarmos, nós o avisaremos.
            _ Obrigado, senhor.
            Diego saiu da delegacia e viu um caminhão coberto com uma lona sair do quartel, uma ventania levantou uma das pontas que estava mal presa, homens amontoados na carroceria estavam lá, dentro de gaiolas, Diego reconheceu Pablo.
            _ Pablito!
            Pablo procurou pela voz e o viu.
            _ Pai!
            Um soldado, que estava perto, bateu com o cabo do fuzil do estômago de Diego e depois lhe acertou uma coronhada na cabeça, Diego caiu no chão.
            _ Quieto, homem, senão irás junto com aqueles infelizes!
            Nunca mais Diego viu seu filho, voltou resignado para casa e perdeu a alegria e o ímpeto que ainda pudesse ter para viver, após muitos anos, ele ainda se lembrava daquela última vez que o vira, como se ele fosse um animal carregado num caminhão. E depois daquele dia, começou a ter muita dificuldade para se lembrar de qualquer coisa que lhe acontecia, conseguia lembrar-se perfeitamente de tudo o que ocorrera antes, mas nunca do que ocorrera depois do desaparecimento do filho, como se a cabeça não quisesse nunca acreditar que o perdera. Pablo passaria a figurar na enorme lista de desaparecidos do regime militar chileno.
O caminhão levou os homens até o aeroporto militar. Lá, os soldados colocaram-nos em fila, encostados numa parede. Um soldado anunciou a presença do general, que entrou para ver a cara de quem seria levado para o passeio. Era o próprio ditador que vinha conferir de perto, pois, entre os presos, encontrava-se um dos mais importantes, um homem chamado Galhardo.
            _ Finalmente tu vais morrer! – Disse-lhe o general.
            Galhardo cuspiu no rosto do militar.
            _ Morrerei, mas tu continuarás a ser um cão e, um dia, tu serás humilhado por este povo que haverá de vencê-lo.
            _ Já és um homem morto! – e o general socou o rosto de Galhardo.
            Em seguida, aqueles homens foram colocados dentro de um avião militar de pára-quedistas, que levantou vôo e sumiu no horizonte. Em alto mar, os soldados abriram a porta, a luz do sol, que nascia no horizonte, ofuscava-os, o sargento Guzmán ironizou.
            _ Espero que todos tenham gostado da viagem pois ela acaba aqui para vocês. Lá embaixo, vocês vão conhecer o Oceano Pacífico e os tubarões, mas, para que eles venham conhecê-los, eles precisam de sangue.
            Dizendo isto, o sargento puxou o primeiro condenado e o colocou na beira da porta, o vento era muito forte, o homem recusou-se a pular, o sargento deu um tiro na perna do coitado e o jogou do alto, e assim foi, um a um, ao chegar em Pablo, este ainda pediu:
            _ Mate-me antes, por favor.
            _ Não rapaz, um tiro na perna é muito melhor, o sangue na água atrai os tubarões que irão devorar-te.
            Atirou e o empurrou, enquanto caía, Pablo viu que o mar era azul.