A MARIPOSA


A música começou a tocar exatamente às cinco da manhã, vinda do rádio despertador do Agenor. Clélia levantou-se e se trocou, colocando o vestido surrado, chinelos de dedo, saiu do quarto, enquanto o marido custava a abrir os olhos, pensando em não ir hoje para a praça em que iria montar a sua barraca de quinquilharias, pois era a segunda sexta-feira do mês, mas a rotina o fez levantar-se e vestir a roupa de trabalho, foi ao banheiro. Quando saiu, sentiu o aroma agradável do café vindo da cozinha.
Sentou-se à mesa onde um pão amanhecido já o aguardava com margarina, bebeu o café preto, forte.
_ Será que a gente vai ter um dinheiro para comprar uma mochila nova pro Neizinho ir prá escola? Aquela dele já está toda rasgada!
_ Sei não, mulher, hoje é o dia de pagar o Santo!
_ É mesmo, esqueci, você guardou o dinheiro?
_ Guardei, mas não deu prá tudo, não. Lá na praça tem umas mochilas boas, é o Toninho que vende, vou falar com ele!
A mulher o ajudou a colocar o saco com os canos e a lona nas costas, também outro saco grande com as mercadorias que iria vender. Uma dor na coluna o machucava um pouco, mas aquele era o seu ganha-pão, abriu a porta da casa simples, despediu-se e saiu para o mundo, descendo a ladeira de barro, o morro baixo e cheio de mato. Rádio de pilha ligado, ouvindo o programa do Vilaventura, um radialista que misturava as músicas populares com notícias curiosas, crimes e fofocas dos artistas, e superou o quilômetro e meio até o ponto de ônibus, cujo primeiro veículo saía todo dia às cinco e trinta da manhã, geralmente conduzido pelo Altino, motorista em vias de aposentar-se, acompanhado do Zé Maria, torcedor do tricolor, que não suportava quando o Esporte ganhava do seu time.
Todos que ali tomavam o ônibus se conheciam, tanto era o costume, tantas eram as dificuldades. Da periferia da cidade saíam os camelôs, as empregadas domésticas, as faxineiras, os ajudantes gerais e toda a sorte de pessoas que viviam no subemprego, alocados para o trabalho nas frestas existentes no centro da cidade. Eram brasileiros, mas sentiam-se estrangeiros. Todo dia, deixando a Índia, percorriam, nos coletivos lotados, as ruas da cidade a caminho da Bélgica, da qual não faziam parte. Conheciam-se porque o ofício diário os obrigava, ajudavam-se no que podiam, carregando os objetos do amigo, ou andando em grupos para se proteger dos bandidos. Encontravam-se no ponto de ônibus, faziam a fila organizada para entrar no coletivo, respeitavam-se mutuamente.
O coletivo ainda levaria uma hora e meia até o centro da cidade.

“Praça Quinze tomada por camelôs”, era a notícia de “O Diário”, que estava em cima da mesa de reuniões do prefeito, naquele momento discutindo com três secretários, o de obras públicas e o de finanças e o da cultura sobre o que fazer,  a janela da prefeitura dava de frente para a Praça Quinze, confirmando a notícia e o deixando ainda mais nervoso.

_ O quê a gente vai fazer com isso? – esbravejava o prefeito, mostrando a praça pela janela. Os secretários pensavam numa resposta e não sabiam o quê dizer. A imprensa insistia no assunto porque decorriam já dois anos que ele assumira e uma das suas promessas fora devolver a praça para os pedestres, retirando os camelôs.
_ Eu quero uma solução rápida, vamos retirar estes camelôs desta praça, mandem os fiscais notificarem todos os que não tiverem licença, eles têm quinze dias para sair, precisamos limpar a praça.
_ Eles vão voltar senhor prefeito, é tirar hoje e no fim do mês estão todos de volta.
_ Precisamos de uma idéia boa para impedir que eles voltem para a praça.
_ Se os tirássemos de lá e colocássemos tapumes em volta da praça, eles não voltariam... – disse o secretário de obras.
_ É uma boa idéia, mas a população usa a praça como passagem. – Completou o secretário de finanças.
O prefeito Edson olhava a Praça Quinze, tantos camelôs que mal se via o desenho do calçamento em pedras. Precisava de uma solução, uma boa idéia para retirá-los e limpar a praça, por ele vista todos os dias daquele jeito, parecendo mais cheia que há dois anos, nos seus primeiros dias de governo. Enfim, Túlio, o secretário da cultura, teve uma idéia.
_ Vamos por uma escultura no meio da praça, bastante iluminação, uns jardins em volta, talvez uma fonte com água jorrando de vez em quando... a praça ficaria fechada uns três meses ou mais para obras, os camelôs iam ter que se virar, ir para outro lugar, iam desacostumar do ponto.
_ Uma escultura, parece uma ótima idéia, Sebastião, veja lá os nossos recursos, quanto poderemos dispor para estas obras – disse o prefeito ao secretário de finanças, depois, dirigiu-se ao autor da idéia – ótima idéia, Túlio, acho que vai dar certo, fechamos a praça, dizemos à população que é por um tempo pré- determinado, que estamos remodelando tudo – ele já pensava lá adiante, nas vantagens políticas da obra – e poderemos reinaugurá-la em grande estilo, o povo vai gostar de ver uma bela escultura na praça, precisamos de um artista, um grande escultor, veja quem pode ser.
_ Mas não basta só isso, precisamos justificar a retirada destes camelôs da praça – observou o secretário de finanças.  Fechar a praça vai dar o que falar, a oposição vai cair matando, vai dizer que você só quer prejudicar os trabalhadores e estas coisas, pensa bem!
_ Vamos pensar muito bem antes de dar qualquer passo, Mário. Não vou fechar a praça e colocar uma escultura lá assim, sem mais nem menos. Vamos pensar bem, é só uma idéia, por enquanto.

_ Olha o Santo chegando! – murmurou Toninho, só para o Agenor ouvir.

Agenor já estava preparado, conseguira juntar o dinheiro com as vendas do dia, mas não conseguia acostumar-se àquela rotina, toda segunda sexta-feira do mês aparecia o Santo para pegar uma parte do que eles vendiam. O Santo era um fiscal estadual, passando dos cinqüenta anos, baixo, moreno, com uma barriga saliente. Dizia recolher o imposto, mas todos sabiam que ele vinha buscar a propina para garantir a permanência dos ambulantes clandestinos na praça, no mínimo, cobrava cinqüenta reais ou mais de cada um, dependendo de como fora a coleta anterior, havendo por ali aproximadamente trinta clandestinos, a cada mês arrecadava cerca de dois mil reais somente naquela praça. Ninguém sabia ao certo para onde ia aquele dinheiro, porque não acreditavam que o Santo agisse sozinho, diziam que ele passava em todo lugar da cidade em que houvesse um ambulante.

_ Bom dia, Agenor! Bom dia, Toninho, como vão? – Perguntou o Santo, como se o que viera fazer fosse algo legal, normal, e aceito por toda a sociedade.
_ Levando...
_ As vendas estão boas?
_ Não...
_ Este mês para vocês é cem de cada um.
_ Cem? É muita coisa, preciso comprar uma mochila pro menino...
Toninho também reclamou que o valor era alto.
_ Tá bom, vou deixar por oitenta, mas o mês que vem vai ser cem, não vai ter choro!

O Santo pegou o dinheiro de ambos e foi para a barraca ao lado, continuou o recolhimento de propina dos outros ambulantes, Agenor pagava o fiscal com desgosto, sabia que, ao aceitar aquela situação, ele se tornava cúmplice da corrupção, o pior é que o dinheiro fazia muita falta, sua vida não era fácil, passava muitas dificuldades, mal conseguia o suficiente para trabalhar e por comida dentro de casa. Lembrava-se muitas vezes do Jones, que se recusou a pagar o valor que o Santo pediu, deu só metade. No dia seguinte, ele não apareceu na praça, depois ficou sabendo que ele apanhou a noite inteira dos capangas do Santo e foi impedido de voltar. Sem o sustento de camelô, começou a catar papelão e latinha na rua, depois o Agenor não o viu mais. Mas ele tinha medo, sabia que pagava vários preços a aquele ladrão, o preço de ser clandestino e de se apegar àquela vida de pouco lucro, e tinha vários medos, também, medo de denunciar, medo de não conseguir sustentar a família se perder o ponto, medo de apanhar e medo de morrer na mão de um fiscal corrupto.
_ Agenor, para mim isso aí vai acabar – disse o Toninho.

_ Vai acabar, como assim?
_ Eu vou embora, juntei um dinheiro, vou voltar para Minas Gerais.
A notícia o entristeceu porque um dos grandes amigos que ele fizera na praça fora o Toninho, sempre ali, presente, ajudando nas dificuldades, às vezes combinavam de tomar cerveja um na casa do outro, faziam um churrasco simples. O amigo dizia que não agüentava mais viver na cidade grande, muita violência e corrupção. Era melhor voltar para a sua terrinha.
Toninho realmente se mudou depois de uma semana, despedindo-se sem saudade daquele esquema rotineiro vivido pelos ambulantes há alguns anos, nenhum deles reclamava porque, no fundo, todos compartilhavam o parco lucro que aquele comércio gerava. Ainda que as dificuldades fossem enormes, todos, inclusive Agenor, concordavam que era melhor assim do que estar desempregado ou subempregado, a maioria tinha pouco estudo e enfrentado empecilhos para conseguir vaga em empresas da cidade, porque todas exigiam qualificação, partindo, então, para o comércio ambulante, alguns ganhavam mais na praça do que num emprego.
A secretária do prefeito dizia, pelo interfone, que o secretário de obras estava aguardando para a reunião, o prefeito autorizou a sua entrada.
Mário entrou. Já estava acostumado àquela sala luxuosa, Edson o aguardava ao lado da mesa de bebidas finas, isto significava que ele estava animado, o prefeito gostava de servir um drinque quando esperava boas notícias.
_ Sirva-se, Mário. O quê temos de importante?
_ Trouxe aqui o projeto para a praça, queria discuti-lo com você.
_ Ótimo, vamos aqui na mesa de reunião.
Os dois chegaram a uma grande mesa oval, de tampo de vidro, pés de pedra, cadeiras estofadas, Mário abriu o projeto em cima da mesa, era um desenho da escultura, ao lado do papel, colocou o caderno com os custos estimados. O prefeito olhou o projeto, abriu o caderno, folheou-o, leu alguma coisa, achou muito bom.
_ Este desenho parece com umas asas de borboleta!

_ E são, o nome da escultura vai ser “A Mariposa”.
_ A Mariposa, muito apropriado, aqui estão os custos, o Sebastião já os analisou?
_ Claro, tudo calculado direitinho, aliás, ele mandou este custo “alternativo” aqui para você ver.

Mário tirou do bolso uma folha em que estava escrito, à mão, pela letra do Sebastião, uma série de números, que só os iniciados na arte de conseguir vantagens financeiras de obras públicas podiam entender, não havia qualquer nome escrito, apenas números e valores.
_ Ótimo! Mas ainda falta um detalhe! Precisamos ter muito cuidado para começar as obras, muito tato, na verdade, se tivéssemos um bom motivo para fechar aquela praça.
_ Precisamos de alguma coisa que coloque a opinião pública a nosso favor.

_ É, algo assim. O povo tem que querer a mudança da praça. Se a gente mandar fazer sem que o povo sinta que é importante, todo mundo vai cair matando e vai pegar mal, a oposição vai se aproveitar.

Nesta hora, Mário falou com o prefeito com um tom de voz muito irônico, talvez sarcástico.

_ Mas, senhor prefeito, algo me diz que alguma coisa muito importante vai acontecer em breve, acho que o povo vai mesmo pedir para que aquela praça seja melhorada, arrumada, consertada, embelezada.
_ Não me diga! – o prefeito falou usando o mesmo tom, chegando a ser teatral – será que você falou com o Serafim?
_ Imagina, eu nunca pediria nada para o Serafim. – e sorriu maroto.
Aliviado, o prefeito voltou até a sua cadeira e sentou-se, olhou pela janela e viu a praça, imaginava-a com a escultura no meio, embelezada, sem camelôs, com o povo a aclamá-lo.
Uns dias depois, o Geraldo, que vendia produtos importados “made in Paraguai”, chamou a atenção de alguns camelôs, inclusive o Agenor. O programa vespertino de notícias fez a chamada: denúncia de corrupção, um fiscal do município que cobrava uma taxa dos camelôs da praça Quinze.
_ Vai mostrar o Santo, só pode ser ele! – alguém falou.

Ao voltar do intervalo, veio a notícia, um repórter, com uma câmara escondida, gravou o fiscal Santo recebendo propina dos ambulantes da praça, mostrava o Santo chegando, dizendo o preço, pegando o dinheiro, conferindo e indo embora. Os camelôs, aglomerados para ver uma minúscula imagem daquele televisor, mas o fato era mais importante do que o possível de ver. Todos pensaram, imediatamente, que eles ficariam livres dele. Mas outro não demorou a lembrar que fiscal corrupto dava mais que mosca na merda.

O Ministério Público abriu um processo para apurar a fato e parecia haver mais fiscais envolvidos. Em pouco tempo, aquilo tomou grande dimensão. Como se fosse uma explosão arrasando a classe dos fiscais.

O prefeito aproveitou a oportunidade surgida com o escândalo dos fiscais corruptos para reunir a imprensa e anunciar novos tempos na prefeitura, iniciaria uma devassa e, se houvesse algum fiscal municipal envolvido, todos seriam afastados, e, finalmente, aproveitou para lançar o plano de revitalização da praça Quinze.
_ Depois que descobrimos que havia fiscais corruptos abusando dos camelôs da praça Quinze, tomamos medidas para acabar com isso. A prefeitura contratou o escultor Ari do Carmo para realizar um grande projeto na praça, iremos deslocar os camelôs para que possamos revitalizar a praça, já está em estudo no nosso departamento de planejamento a realização das obras que devem começar em breve.
Aquela notícia desagradou os ambulantes da praça, viram-se livres do fiscal corrupto e agora seriam obrigados a mudar-se dali, ninguém se dispunha a sair e alguns falavam em oferecer resistência.
A neblina ainda estava espessa e ainda era muito cedo, pouco mais de seis horas, quando Agenor, após descer do ônibus para mais um dia de trabalho, carregando as suas mochilas com os equipamentos, pensando nas compras para casa a fazer e nas contas a pagar, chegou à praça e a viu cercada de tapumes de madeira. O muro de compensados deixava livre apenas a faixa do passeio que circundava a praça. Circulando próximo ao tapume, três guardas municipais. Agenor ficou indignado porque não poderia montar a sua pequena barraca de quinquilharias, juntou-se com outros ambulantes que se aglomeravam próximo à padaria onde alguns tomavam o café da manhã, todos estavam revoltados como ele, falavam alto, expressando sua raiva, gesticulavam muito, alguns batiam com as mãos naqueles compensados de madeira, deixando preocupados os poucos funcionários municipais que, após montar os tapumes, começavam a quebrar a calçada interna da praça, um dos guardas, que ficava no portão improvisado, nada sabia informar aos ambulantes, dizia apenas que a prefeitura ia arrumar a praça e que eles estavam proibidos de trabalhar ali, deveriam ir embora.
Um automóvel da prefeitura chegou, dele saindo um funcionário da secretaria de obras públicas, os ambulantes foram tomar-lhe satisfação sobre o assunto. Um mais exaltado começou a discutir com ele, que limitava-se a dizer que foram ordens e que eles estavam proibidos de trabalhar naquela praça, aquele o empurrou e o ameaçou, um outro ambulante empurrou um dos tapumes até que ele caísse, os três guardas municipais se aproximaram com cassetetes em punho, os ânimos foram se acirrando. Chegaram dois fiscais municipais, alguns ambulantes queriam derrubar outros tapumes, gritando palavras de ordem e incentivando os colegas.
Já passava das sete da manhã e muitas pessoas circulavam por ali a caminho do seu trabalho, algumas começaram a parar para ver a confusão e uma pequena multidão de curiosos formou-se. Em pouco tempo, havia um grande bate boca entre os fiscais e os ambulantes. Estavam ali o combustível e o comburente, faltava apenas um detonador da explosão, que ocorreu quando dois carros de polícia pararam e deles desceram uns cinco policiais militares que foram tentar acalmar os ânimos.
Os policiais tentavam mediar a situação, procuram conversar, no entanto, quando a própria sobrevivência está ameaçada, o homem tende a ser mais animal e tem dificuldade para usar a razão. Mais meia hora de discussão sem solução, sentindo que a situação poderia sair do controle da autoridade pública, um policial pediu reforço, cerca de meia hora depois, um caminhão do batalhão de choque chegou e uns vinte homens desceram e formaram uma fileira, logo em frente do grupo formado pelos ambulantes que, àquela altura, haviam conseguido o apoio de colegas de outros pontos do centro. O clima estava terrivelmente pesado naquela que seria apenas mais uma manhã tranqüila.
Ninguém soube ao certo se o barulho ouvido foi um pedaço de pau, uma pedra, uma batida de automóvel, um tiro. O fato é que houve um estampido alto, dois ambulantes, mais exaltados, correram e pularam, batendo com os pés em alguns tapumes, aquela corrida fez com que algumas pessoas da multidão se assustassem e corressem, ouviu-se mais um barulho, o comandante da operação militar recebeu uma ordem de dispersar a multidão, de onde alguém lançou uma pedra que atingiu a cabeça de um fiscal. Rápidas, muitas outras pedras começaram a chover.
Como reação, houve primeiro uma série de empurrões, as pessoas se descontrolaram, mais alguns ambulantes começaram a derrubar os tapumes, pessoas alheias ao fato que estavam no meio da multidão, talvez por medo do pior, talvez porque se sentiam oprimidas pelo esquema de vida a que se submetiam, talvez porque tivessem problemas pessoais de difícil solução, começaram a querer sair do meio da confusão à força, usando até a agressão física sem respeitar ninguém, começando um tumulto dentro daquela aglomeração. Muita gente começou a correr para onde podia, o tumulto se alastrou, em poucos segundos, já não havia controle, a polícia entrou em ação, algumas bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas, estourando na multidão, as pessoas correram para onde era possível fugir, ouviram-se muitos gritos, todos estavam assustados, o batalhão de choque avançou sobre o grupo de ambulantes, começando a bater com os cassetetes de borracha naqueles supostamente mais exaltados. No meio de tanta gente, havia muitos que, não tendo nada a ver com o que estava acontecendo e querendo apenas descarregar energias destrutivas, aproveitaram para jogar mais pedras nos carros da polícia, escondendo-se no anonimato.
Durante quase meia hora o que se viu foram cenas de guerra entre o batalhão de choque, ambulantes e multidão, que se dispersava à força. Muita gente gritando, mulheres perdiam o sapato para fugir, gente com raiva de seu próprio mundo descontando em cima da representação de poder visualizada no batalhão de choque. O saldo do tumulto foi a destruição de todos os tapumes, a paralisação das obras naquele dia, funcionários municipais machucados, alguns ambulantes detidos, outros feridos levemente e uma péssima repercussão para a imagem da polícia e da prefeitura.
E muita mercadoria clandestina destruída. Agenor viu-se envolvido pela circunstância do tumulto e bateu tanto quanto apanhou de quem vinha para o lado dele, tentava defender suas coisas, inútil. Todas as tralhas estavam esparramadas pela rua, muita coisa fora roubada, ele olhava entristecido pela brutalidade da vida, que insistia em ser a cada dia mais bruta, mais dura e mais cruel. Sobraram restos de uma barraca que não chegou a ser montada, pedaços de suas mercadorias.
Por ironia, ele ainda encontrou no chão uma mochila escolar nova, dentro do plástico, devia ser de algum colega, e o Neizinho estava precisando de uma há um tempão. O braço lhe doía muito, levara uma forte pancada de cassetete de um policial, ainda assim, recolheu a mochila enquanto olhava o saldo de tudo, os escombros de tapume cercando a praça, as coisas pelo chão, os seus amigos recolhendo os pertences que ainda eram possíveis de ser aproveitados. Dez anos de trabalho duro estavam destruídos, enquanto a pouca coisa construída na pobreza se mantinha, anos transformados em pedaços irreconhecíveis. Não havia como recomeçar. Altino, seu amigo, encontrou um disco pirata dos Titãs e começou a tocar “Polícia”.
O caminho de volta foi feito mais cedo. A tristeza e a incerteza o arrebataram e o emudeceram. Foram-se dez anos de trabalho e outros tantos de futuro, ainda havia o menino para criar.
Na rua de terra, Neizinho jogava futebol com os outros moleques de sua idade. Era a melhor diversão dos meninos, eram poucas as escolhas para os que estavam próximos de nove anos. Jogar futebol, empinar pipa, cheirar cola, roubar toca-fitas, ir para o centro e pedir dinheiro no sinal.  Mas Neizinho não era assim, só gostava do futebol e viu o pai subindo a ladeira de lama, chegando muito cedo, quase nada na mão, apenas uma mochila nova, e percebeu que alguma coisa muito ruim acontecera. Deixou o jogo e foi acompanhar o pai, correu, cumprimentou-o, no que foi retribuído de forma triste, apesar do sorriso no rosto do pai que lhe entregou a mochila nova, no entanto, sua percepção infantil sentia a tristeza do pai e continuou em silêncio, caminhando ao seu lado até a casa. Agenor olhava aquele bairro de periferia, as ruas de terra, as casas pequenas e pobres, o menino do lado e pensava no futuro, considerando os fatos que acabavam de ocorrer.
Ao entrar, Clélia logo perguntou sobre o que havia acontecido.
_ Acabou! Tudo acabou!
_ Como assim, homem, tudo acabou?

Agenor contou-lhe. O menino ouvia tudo e começava a sentir o medo do futuro. Bastava-lhe a pobreza. Não queria atingir a miséria. E muito o casal conversou sobre o que fariam, o que era possível, como recomeçar. E choraram juntos e o menino chorou baixinho em sua cama, com medo deste mundo.

Alguns meses depois, as autoridades municipais estavam presentes para a inauguração da grande escultura no centro da Praça Quinze. Prefeito, secretários, vereadores da situação. Os jornalistas convidados, do rádio, da televisão e da imprensa, faziam a cobertura do evento, o famoso escultor Ari do Carmo sorria triunfante.

Naquela manhã, os tapumes foram retirados e um grande pano branco fora colocado em volta da escultura de cerca de seis metros de altura, a curiosidade de todos era grande. Claro que as pessoas que circulavam pelos edifícios da praça já tinham visto todo o processo de construção e sabiam como ela era, mas, mesmo estes queriam vê-la de perto. Sem o tapume, via-se toda a beleza da nova praça, reurbanizada e com nova jardinagem, belas flores, novos caminhos, e, para alegria geral dos cidadãos, de acordo com o entendimento do alcaide, livre dos ambulantes.
O prefeito foi chamado para puxar o pano e revelar a escultura. Ele se dirigiu, inicialmente, ao pequeno palanque montado à frente dela.
_ Caríssimos cidadãos – começou o seu discurso - é com grande prazer que inauguro esta bela escultura deste grande e consagrado artista, Ari do Carmo. Convém lembrar que há cerca de oito meses, esta praça era um local repleto de ambulantes, camelôs e trombadinhas, em que a população não podia passar com segurança, o comércio sofria uma concorrência desleal e, pior ainda, era um ponto em que, infelizmente, encontrávamos fiscais corruptos agindo ilegalmente. À noite, encontravam-se muitos drogados e bandidos. Nós conseguimos acabar com isso, a partir de agora, a praça Quinze será sempre um ponto de encontro do nosso povo, que poderá descansar, passear e apreciar este trabalho grandioso.
Terminou o discurso e se dirigiu até a corda que segurava o pano, puxando-a, fez surgir a enorme escultura.
A escultura era formada de duas grandes placas de concreto azul, unidas em baixo, formando um grande V se vistas de frente. De lado, as formas arredondadas lembravam grandes asas de borboleta. Esta escultura era pousada em uma estrutura tubular de aço e concreto de tal forma que a obra lembrava uma grande mariposa azul, que parecia voar sobre as cabeças de quem passava por ali. Uma obra bela, sem dúvida alguma.

Felizmente, a rua de terra que levava à casa do Agenor estava seca, era inverno e não chovia há uns vinte dias, o vento levantava nuvens de poeira avermelhada. Toninho, de retorno à cidade, subiu a pequena ladeira, parou e bateu na casa do amigo, passava das seis da tarde. Clélia atendeu e uma expressão de alegria tomou o seu rosto ao ver o velho amigo a visitá-los.
_ Agenor, corre aqui – ela gritou – é o Toninho!
Agenor veio correndo.
_ Toninho, meu amigo, que saudade. Entra aqui, vem tomar um cafezinho.
_ Obrigado, Agenor, como você tem passado?
Enquanto a conversa se iniciava e Toninho e Agenor sentavam-se à mesa para um café, Clélia colocou a água para ferver, tirou o pó de café do armário, pegou o velho coador de pano.
_ Vou bem, Toninho, e você? Não te vejo desde antes da confusão da praça Quinze, como é que está lá em Minas?
A conversa foi rolando e logo o aroma do café passado na hora tomou o casebre deixando que se estendesse por mais duas horas. Naquele período, Toninho soube que o Agenor ficou sem trabalho por três meses porque ele teve um osso do braço trincado na briga com os policiais, período em que viveram do trabalho da Clélia como faxineira, enquanto ele cuidou do menino e da casa, depois, ele arrumou um trabalho como pedreiro, ganhando metade do que ele tirava na praça, mas eles foram se ajeitando, faltava dinheiro às vezes, mas por sorte nunca faltou comida.
 Toninho percebeu que a situação do amigo não havia melhorado, ao contrário, pela pobreza das coisas, viu que tudo estava pior para o Agenor.

E o ônibus que o levava de volta a Minas Gerais passava em frente à praça onde ele trabalhou ao lado do amigo. Aquela grande mariposa azul estava voando, junto com ela, os pensamentos do Toninho, que recebera vinte mil reais para fazer a gravação para aquele tal de Serafim.