O CÃO QUE DEVORA CRIANÇAS


           Carolina saiu à porta da ONG e olhou o céu de inverno, daquele ponto, o entardecer arrebatava um artista que o mirasse, a luz era interessante demais, os tons de violeta e azul pareciam tomar o ar, migrando lentamente para o vermelho, que se deitava sobre aquele aglomerado de casebres e casas mal construídas, ela via a beleza da geografia do lugar, do pequeno promontório em que se localizava a ONG, até o leve declive por mais de duzentos metros, depois, um leve aclive se iniciava, as ruas de terra vermelha tomando outros tons.
Ela percebeu alguém chegando que lhe disse:
            _ Estas cores do entardecer, mudando do azul para o violeta, do violeta para o vermelho, parece que muda tudo, as cores deste bairro ficam muito interessantes, gosto muito de ficar olhando.
            Ela não olhou para ver quem era que falava ao seu lado, sentiu que era alguém com alma artística, que sentia o que ela sentia, ela apenas concordou.

            _ Nem sempre posso admirar o pôr-do-sol assim, mas, o pouco que vejo, percebo que cada época do ano ele é diferente!

            _ Não são só as cores, são os tons diferentes que elas assumem!

            Carolina se voltou para o interlocutor e viu um rapaz, talvez uns vinte anos, roupas à moda daqueles que por ali moravam, tênis bem sujo, pele mestiça de marrom escuro, cabelos bem negros, diria que era um descendente de antigas tribos indígenas que se misturara aos negros, olhos também negros, não era alto, talvez um metro e setenta. Teve um certo receio, pois, pela aparência, ele muito poderia ser um bandido do bairro, poderia até estar ali para roubá-la, mas, pelas palavras, ela sabia que poderia sentir-se segura.
            _ Quando eu era criança, ficava horas sentado bem aqui neste morro, esperando o Sol se por, e, depois que ele sumia atrás do horizonte, eu ficava vendo o céu mudar de cor até que anoitecia. Era muito bonito.
_ E então, o quê você quer?
            _ Quero aprender a pintar - respondeu o rapaz.
            _ Você tem quantos anos?
            _ Dezenove.
            Nisso, veio André Luiz, de cadeira de rodas, já se passara dois meses do dia em que ele fora baleado, apesar de sua situação, o bom humor já estava recuperado.
            _ Eu lhe disse que só poderia ficar se você permitisse!
            Carolina não teve dúvidas.
            _ Ele pode ficar, acho que ele vai aprender muito. Volta aqui amanhã cedo, a gente começa a lhe ensinar, só que você vai aprender com as crianças.
            _ Tudo bem.
            _ Qual é a sua graça?
            _ Pode me chamar de Natalino.
            _ Até amanhã, Natalino.
            Logo depois, antes de sair para mais uma noitada, Natalino pensou nas coisas que estava fazendo, talvez não fosse exatamente esta a vida que ele queria viver. Tudo era difícil e decidir atormentava-lhe a cabeça. Muitas dúvidas, como conseguir tudo o que desejava era a maior. A mãe ia ficar em casa, terminava de lavar a louça e queria assistir a novela. O pai dormia no sofá velho. Ele olhou aquela cena que o amargurava. A sala era pequena, dois por quatro metros, onde cabiam o sofá, uma poltrona, uma cadeira velha, tudo era velho, tudo era de segunda mão e ele percebia que a luz amarelada da lâmpada mostrava um quadro diferente de quando era dia e o sol entrava pela janela. À noite, aquela pequena violeta colocada em cima da televisão tinha flores de outras cores. Ele gravou a cena na memória, e pensava nas coisas que passavam na televisão, não era exatamente a novela, mas também era a novela, ele queria uma vida com mais dinheiro, a pobreza em que viviam o incomodava. Porquê ele trabalhava tanto e era tão pobre, porquê ele estudou até o colegial e não sabia muita coisa, porquê ele enxergava aquelas coisas daquele jeito e não compreendia o que via. Porquê ele gostava tanto de ver aqueles quadros lá na ONG Pincel e Papel. Dúvidas, tantas dúvidas. Precisava sair, para encontrar os amigos, para fazer uma feira, para ir ao baile, para encontrar uma garota. Esquecer estes pensamentos.
                Saiu, fechou a porta de madeira, desceu a rua, encontrou os amigos.
                Pintar uma maçã, uma pera, um buquê de flores, era o trabalho dos alunos da ONG que, a partir daquele dia, começavam a aprender a pintura de naturezas mortas.
                _ Natureza morta é uma pintura, como o próprio nome diz, de coisas da natureza que não estão vivas. Quando a gente colhe uma flor, ela deixa de ter vida, porque ela deixou de estar ligada à planta que a fez crescer, por isto que a gente chama de natureza morta.
                Havia necessidade de explicações simples porque os alunos não tinham compreensão muito aguçada. Ela lhes pediu que, primeiro, desenhassem levemente sobre o papel canson os objetos do ângulo em que estivessem. Depois, foi passando de aluno em aluno, verificando e lhes ensinando a melhor forma de pegar o lápis, como se devia olhar para os objetos, qual devia ser o ângulo de incidência da luz e outros assuntos.
                Natalino chegara naquela manhã, começou a rabiscar o papel, Carolina observou os traços dele. Elogiou-o.
                _ Seus traços estão muito bons, muita leveza, o ângulo é bom, está fazendo bem as sombras, você leva jeito para a pintura, rapaz.
                Os olhos dele demonstraram gostar do elogio, mas ele aproveitou para fazer a sua ironia.
            _ A natureza morta que a gente conhece por aqui é diferente. Por aqui, natureza morta é aqueles caras que amanhece cheio de bala na cabeça e formiga na boca.
            _ É, já percebi.
            André Luiz entrou para olhar os trabalhos, passou observando um por um. Natalino o viu e ficou pensativo, Carolina captou a mudança de expressão no rosto do rapaz, quando André saiu da sala, ela foi até o aluno.
            _ O quê acontece com você? Toda vez que vê o André, você faz uma cara estranha...
            _ Nada não, dona. Tava pensando, por quê ele tá na cadeira de rodas?
            _ Levou um tiro, foi aqui mesmo, de noite, estavam assaltando nossa ONG.
            _ Ah! Então foi ele que levou o tiro, fiquei sabendo que ele foi dar uma de valente.
            _ Você sabe quem atirou?
            _ Por aqui a gente sabe de tudo.
            _ Quem foi?
            _ Por aqui, a gente também não conta nada, todo mundo guarda o segredo.
            Aos poucos, aquele rapaz foi aprendendo mais sobre a pintura. André Luiz e Carolina ensinavam a todos, davam noções de desenho, textura da tinta, tipos diferentes de material, cores, falavam de história da arte e de matemática aplicada à arte. Também começaram a conhecer melhor o rapaz, descobriram que ele fazia parte de uma turma barra-pesada que morava no bairro, costumavam puxar fumo, praticavam furtos no centro, ouviam dizer que ele roubava carros, alguém lhes dissera que ele até já havia matado duas pessoas.
            Os meses passaram. Naquela noite, Carolina já estava fechando a porta da ONG, passava a chave tetra quando o Natalino apareceu naquele fim de tarde, carregando uma grande tela embrulhada em papel cor de rosa, Carolina o viu e lhe disse:
            _ Estou fechando! É alguma coisa importante?
            _ Eu lhe trouxe um quadro que eu pintei em casa.
            _ Um quadro? Que beleza! E foi você que pintou!
            _ É, se você quiser, deixa ele guardado aí e amanhã você vê, não precisa ser hoje, não! Dá uma olhada nele, outro dia eu venho para você me dizer o que você achou dele!
            Natalino saiu, tinha muitas coisas ainda para fazer, marcara encontro com os seus colegas, tinham trabalho, e, certamente, não era trabalho lícito. Carolina abriu a porta, levou o quadro para dentro, colocou-o no chão e estava saindo, precisava passar no supermercado antes de ir para casa e encontrar André, que já se recuperava bem e começava a fazer fisioterapia. Havia uma chance dele voltar a andar, as ligações nervosas não estavam desligadas porque ele sentia dor nos pés e nas pernas quando testado, talvez o trauma sofrido não tivesse rompido as ligações e ele poderia voltar a andar. Em vez de sair, ela trancou a porta por dentro e decidiu ver o quadro, rasgou o papel cor de rosa e viu algo inacreditável, para alguém que começara a pintar a menos de um ano, que morava naquele lugar tão inóspito para a arte, mas, mesmo naquele deserto, Carolina via brotar um pintor. Aquele quadro era a prova.
            O quadro era fácil de compreender e, por isto mesmo, terrível em sua crueza. No centro, via-se um enorme cão avermelhado, de olhos cegos, à sua frente, a favela, de seu lado esquerdo, apartamentos. O cão parecia caminhar sobre uma enorme e infinita cidade. A luz era mais intensa na parte frontal do cão e mais sombria atrás do cão, no entanto, parecia não haver um foco de luz definido. Na boca do cão, dentes arreganhados, a baba canina caindo como se fosse um cão raivoso, comendo crianças, jovens, meninos e meninas, algumas nuas, muitas crianças sendo devoradas pelo cão.
            Ela percebeu logo que eram as crianças da favela que o cão devorava. As pessoas dos apartamentos brindavam e festejavam e se drogavam, outras assistiam televisão e todas permaneciam indiferentes ao enorme cão raivoso. Os apartamentos eram desenhados com vários aparelhos eletrodomésticos e muito luxo, de onde se deduzia que eram de pessoas abastadas. Ao olhar o cão bem de perto, podia perceber-se que ele era formado de pequenas figuras de pessoas engravatadas, de carros de luxo, de barcos, de aviões.
                Quando as sombras começavam a aparecer na traseira do cão, podia-se ver que o animal ao mesmo tempo defecava, e, de dentro das fezes do animal, saíam homens armados, atirando, outros apareciam com facas e matavam outras pessoas ao lado, os tiros atingiam as pessoas que estavam no apartamento, que faziam caras de assustadas, e que gritavam como naquele quadro de Munch.  Percebia-se que havia alguma coisa de Bosch misturado naquele quadro, algo de Picasso, de Maquiavel, e de tantas influências. O cão comia crianças e defecava bandidos.
                Então, Carolina, admirando-se com o trabalho do Natalino, percebeu o que ele sentia. O cão. O mundo cão. A sociedade cão que devora as crianças da favela, que devora os excluídos e marginalizados, transformando-os em bandidos, em mortos, em mutilados, e, enquanto este cão devora as crianças, ninguém se preocupa, todos riem e se divertem, mas, depois que nascem os bandidos nas fezes deste cão, todo mundo fica horrorizado. E o cão, enfim, somos nós mesmos, nós o formamos pela sociedade de consumo, quando vivemos apenas pelos valores monetários, sem dar a mínima valia para as pessoas que estão sofrendo do nosso lado. Era simples, próximo da compreensão daquele rapaz e, ao mesmo tempo, era triste e terrível. O quê sentiam aquelas pessoas que moravam naquele bairro? Sentiam-se tragadas pelo mundo, sem chance de reação, a não ser quando, afundados no excremento da sociedade, vingam-se.
                Ela ficou muito tempo olhando aquele quadro, admirando a fantástica obra, lendo-a, apesar de ser uma pintura bastante maniqueísta, mas, enfim, considerando toda a pouca formação educacional e artística do autor, tratava-se de um trabalho primoroso, com cores fortes e contrastes com sombras. Mas, ao mesmo tempo, ela sabia que o pintor, naquele momento, poderia estar praticando um crime, assaltando, e até morrendo, e pensou que a vida de todo mundo estava sempre por acabar, que, se ela perdesse o Natalino para o crime, perderia um pouco a humanidade de não ter aquele pintor, e, por quê não, aquele pensador, sim, porque ele era um pensador do seu mundo, um intelectual em busca de expressão. Quantos artistas o país está perdendo para o crime? Incontáveis pessoas buscando uma forma de expressão, querendo usar as suas energias para gritar ao mundo e protestar que acabam encontrando um lugar no tráfico de drogas, no crime, e em outras formas não produtivas, não artísticas, não filosóficas.
                Na manhã do dia seguinte, Carolina chegou para o trabalho na ONG, abriu o escritório, reviu o quadro “O Cão que Devora Crianças”, nome provisório que ela mesma dera àquela obra. E, enquanto aguardava a secretária, pegou o endereço do Natalino, queria encontrá-lo e lhe falar. Quando a moça chegou, ela saiu, não queria perder tempo e, enquanto caminhava pelas ruas estreitas, começou a perceber melhor o povo que ali morava, a olhar os seus rostos, e ver a sua situação, meninos magros e sujos se reuniam para jogar futebol no campinho, algumas meninas com bonecas, outras ajudando nos afazeres domésticos, adolescentes e jovens parados, muita gente nos pontos de ônibus, e viu os rostos daquelas pessoas mostrando o sofrimento da luta diária pela sobrevivência, enfim, Carolina começava a compreender que aquela gente existia e fazia uma comparação mental com a sua própria vida, entendendo o quanto ela fora privilegiada, por ter tido uma vida de classe média, estudado em colégio particular, dirigir, ter coisas que aquela gente nem imaginava. Ela pensava que em cada um deles poderia existir um artista, um intelectual, um político, uma pessoa que pudesse mudar os rumos do próprio povo, levando-os adiante. A pobreza e a miséria enfim se revelavam a ela, não como números, não como pessoas distantes precisando de assistencialismo, mas como gente cheia de dores e alegrias, com seus desejos e a sua luta. Compreendia a distância brutal que a separava deles, a injustiça que era a falta da escola decente, do emprego, de saúde. Tudo isso lhe vinha à cabeça, e entendia agora o quanto sua luta era romântica, idealista, tão fora da realidade daquele povo, mas, ao mesmo tempo, todo aquele sonho que ela possuía se tornava mais forte e mais vontade nela surgia de continuá-lo, pois descobrir alguém como o Natalino valia por tudo.
                Dona Mariana abriu a porta quando ouviu uma voz de mulher chamando o filho, e, lá fora, foi encontrar-se com Carolina.
                _ O Natalino está aí?
                _ Não, senhora.
                Dona Mariana ficou medindo aquela mulher, pela aparência percebeu que se tratava de alguém chique e doutora, como ela mesmo definia quem possuía algum dinheiro.
                _ O quê a senhora quer com o meu filho?
                _ Eu sou a Carolina da ONG Papel e Pincel, queria conversar com ele sobre um trabalho.
                A mãe respondeu que o filho não estava, tinha passado a noite fora, mas que assim que ele chegasse, iria dar-lhe o recado.
                No outro dia, enquanto ela via alguns documentos, ele apareceu, trazendo na mão um embrulho.
                _ Que bom que você veio. Gostei daquele quadro, é muito interessante, gostaria de compreendê-lo melhor, o quê você quer mostrar com ele?
                Um pouco sem jeito, ele começou a dizer, sentia-se realmente bem por saber que fizera algo que despertou o interesse da artista:
                _ As coisas que eu vejo, essa gente rica que não dá bola para a gente, só lembra que é por aqui que eles encontram o pó, pensam que aqui só tem bandido, depois, vejo esta criançada espalhada por aí, tudo sem fazer nada, sem futuro nenhum, eles têm escola, mas é como se não tivesse, porque não se aprende nada.
                _ Mas você não aceita as coisas assim...
                _ Não, eu queria mudar tudo, queria que fosse tudo diferente.
                Carolina queria retirar mais alguma coisa dele, no fundo, ela queria que ele falasse mais das atividades ilícitas que participava, como uma forma de mostrar-lhe um outro caminho, aproveitou o momento, percebeu-o mais relaxado.
                _ E aí, você parte para praticar alguma coisa que não é muito correta...
                _ Mas o quê não é muito correto? Você quer dizer das coisas que eu roubo, de vender os baseados? Eu só tiro proveito da burrice dos bacanas lá do centro, eles querem fumar, eu arrumo os baseados, eles querem um som legal no carro, eu pego de outro carro, é assim que a gente vive... - Natalino fez um pouco de silêncio e depois continuou - no fundo, são eles que continuam comprando a gente, do jeito que querem, a gente é vendido, e faz assim para sobreviver.
                _ Como aquele assalto que foi feito aqui. Foi alguém que você conhece, não foi? Eu não entendo porque nos assaltaram.
                Natalino ficou pensativo, não respondeu imediatamente.
                _ Eu sei quem foi, e assaltaram porque não conheciam o que vocês fazem, pensaram que era igual um monte de gente que vem aqui, diz que quer ajudar a gente a melhorar de vida, dá umas roupas velhas, traz aqui uns bagulhos de segunda mão, umas cestas básicas e acha que fez muita coisa. No outro dia, as roupas velhas viram pano de chão, uns bagulhos de segunda mão vão parar no lixão e a cesta básica acaba, e a gente continua do mesmo jeito.
                _ Como é que você acha que é ajudar?
                _ Ajudar é fazer mais ou menos o quê vocês estão fazendo, tão ensinando alguma coisa, a gente precisa aprender, precisa saber mais para trabalhar em emprego de branco, ganhar dinheiro honesto, é isso que a gente quer, ninguém gosta de ser pobre não, ninguém quer ficar na rua sem fazer nada o dia inteiro, todo mundo quer trabalhar, quer ser gente.
                Carolina começava a entender o quê se passava na cabeça dele, no entanto, ela continuava na mesma linha, não queria fugir do assunto, talvez pudesse lhe falar de outras coisas, mostrar-lhe que ele estava errado, talvez ele pudesse compreender.
            _ Mas vocês podem prejudicar pessoas que querem ajudar, por exemplo, foi por causa daquele assalto que o André ficou paralítico, se ele não tivesse levado aquele tiro...
            _ Levou o tiro porque foi dar uma de valente, quis enfrentar!
Natalino disse quase sem pensar no que falava. Carolina sentiu que ele sabia mais, só que ela não queria ser grosseira, queria fazer com que ele revelasse o que sabia, tentava usar de toda a delicadeza possível, pois ele era um produto daquele meio ambiente e poderia reagir com brutalidade se percebesse que estava sendo cobrado.
            _ Sabe, o André sempre foi um homem valente, não é de brigar, mas é de lutar, tanto que ele não se entregou, apesar do tiro, está aí, luta, continua fazendo o que pode pelo nosso projeto, podia ter largado tudo e nem você estaria aprendendo arte e pintura, e nem ninguém mais estaria saindo da rua. Sabe, acho que depois que ele levou o tiro é que ficou mais valente, agora é que ele não desiste de jeito nenhum, às vezes, eu tenho vontade de saber quem é que deu o tiro nele, até para lhe mostrar como é que a gente tem que lutar, tem que ser forte, que é assim que a gente tem que ser.
            Natalino demonstrou estar encabulado, parecia preocupado, queria falar alguma coisa, mas não sabia se podia confiar nela, e também não conseguia mais ficar fugindo daquele assunto, precisava dizer o quê sabia, não mais podia ter aquele nó amarrado na garganta.
            _ Eu queria contar uma coisa, eu sei quem atirou nele.
            Ela ficou quieta, esperando a resposta.
            Mas em vez de dizer, ele lhe entregou o embrulho. Ela o abriu, era o livro de artes que fora roubado na noite em que o André fora baleado. Ela compreendeu imediatamente, ele roubara o livro, então...
_ Foi você que atirou...
            Ele não respondeu
            Ela sentou-se na cadeira, respirou, respondeu-lhe.
            _ Eu imaginava que tivesse sido você, por quê não diz quem fez isto?
                _ Não posso dizer quem foi, mas ninguém queria machucar, todo mundo tava na nóia, eu não tava com a arma, ninguém pode segurar uma bala depois que ela sai do revólver, ela quer logo é matar, mesmo quando a gente só quer dar um susto, eu só queria lhe pedir que não conte prá ninguém que eu sei quem foi, tenho medo, se os homens descobrem, vou em cana, se os meus amigos descobrem, eles me matam.
                _ Não posso contar para ninguém, mas eu preciso lhe dizer o que sinto. Eu vejo você, Natalino, e enxergo o seu futuro como alguém muito importante. Vejo você como um exemplo, às vezes, penso que você poderia ser um grande artista ou um grande político, talvez um bom deputado, um senador, você tem algo raro, que é o discernimento!
                _ O quê é isso? Discernimento?
                _ Discernimento é a capacidade de compreender as coisas e distinguir, e fazer relações entre os acontecimentos, e entender o que se passa. Você é muito inteligente, precisa trabalhar a sua inteligência.
                A secretária entrou e cortou a conversa que eles vinham tendo. Natalino aproveitou para sair, estava aliviado porque pôde contar o que fizera, conseguiu confiar em Carolina, talvez pudesse fazer algo mais, pensava nas coisas que ela lhe dissera, não entendia como era isso de discernimento, mas pensava que podia trabalhar para o povo do bairro, podia mesmo fazer mais coisas, mas como?
                Naquela noite, Carolina não dormiu direito. Via André na cama, ao seu lado, e pensava na revelação que o Natalino lhe fizera. No outro dia, apareceu na ONG um amigo de Carolina, num momento em que ela estava só, pois André tinha ido à sessão de fisioterapia.
_ Tales, que bom que você veio aqui! Preciso conversar com alguém e você caiu do céu.
Ela lhe contou toda a história, sem lhe dizer o nome do protagonista, Tales não o conhecia mas ficou estarrecido com a revelação que ela lhe fizera. Seu impulso primeiro era denunciá-lo, para obrigar a revelar  quem atirara em André Luiz e merecia ficar preso, não só por isso, mas porque matara já algumas pessoas, como ele dizia, apesar de não existirem provas, nervoso com a revelação, cobrou de Carolina:
            _ E então, Carolina, o que você vai fazer?
            _ Não sei, Tales, não sei, não conseguirei fingir que está tudo bem e, ao mesmo tempo, não posso contar para o André, se ele souber, não sei o que fará! Por outro lado, não é certo, o cara nos roubou, prejudicou a gente, não foi fácil!
            _ Se você o denunciar, é certo que será preso. O que você acha que vai acontecer?
            _ Talvez os bandidos voltem a nos roubar, ele faz parte da quadrilha e, indiretamente, ou não, ele nos protege.
            _ Mas o André está na cadeira de rodas por causa daquele tiro, você tem que considerar isto também!
            _ Eu sei.
            Era difícil para Carolina, ela ficou um pouco em silêncio, absorvida pelos pensamentos. Tudo o que discutia com Tales tinha o seu peso, mas a sua alma artística se digladiava com o seu lado mais prático, mais mesquinho, e acabou falando em voz alta, como se desabafasse, batendo com a mão na mesa.
            _ O pior de tudo é que ele tem talento, cacete! Eu nunca vi ninguém com tanto talento, nem na faculdade de artes plásticas. Aquele bandido é um gênio! Você já viu as telas que ele pintou, Tales?
            _ Não.
            _ Então venha ver.
            E Carolina o levou para o ateliê em que as pinturas de Natalino estavam guardadas, para que o amigo constatasse a verdade. Tales admirou os quadros como se nunca tivesse visto obras tão geniais, as pinceladas eram firmes, os traços era muito definidos, de excelente precisão, cada quadro, pintado em poucas horas, parecia pensado em muitos anos, os planos e ângulos escolhidos, as cenas de fundo, as cores que combinavam e descombinavam, contrastando-se e se complementando, os retratos pintados diretamente sem desenho e, ainda assim, perfeitos. Era um raro talento, um artista nato, completo, claro, precisando de mais sabedoria, mais conhecimento, mas não de mais talento, o que possuía lhe sobrava. Ao ver o quadro do Cão que Devora Crianças, sentiu um arrepio lhe percorrer o corpo, tal o impacto que lhe causara.
            E foi vendo aquela pequena coleção de dez quadros que Tales pôde perceber a extensão do problema de Carolina, como condenar à cadeia um artista tão raro? No entanto, se a arte não lhe dava condições de sobreviver e, nestas condições, sendo improvável que o bandido vá deixar o crime para se dedicar à arte, porquê adiar a sua prisão? E ficando na rua, no crime, no tráfico, a morte poderia chegar mais cedo para aquele pintor fantástico,
            André Luiz chegou da sessão de fisioterapia, Tales o cumprimentou, olhou para Carolina como a dizer-lhe para revelar tudo e saiu.
            _ Que quadro é este? – André Luiz apontou para um quadro coberto.
            _ Eu ia lhe mostrar, André, é um quadro do Natalino. – Ela o descobriu.
            _ Belo quadro! Maniqueísta, mas um belo quadro! Um cachorro comendo criancinhas. Um quadro terrível. Aquele rapaz está ficando cada vez melhor! Tem futuro!
Foram os comentários possíveis de se fazer, porque começaram a ouvir uma sirene de um carro de polícia que ficava cada vez mais forte. Ouviram um barulho de pneus derrapando, Carolina correu até a janela para ver.
_ É aqui, é ele!
Não houve muito tempo, ouviram-se tiros.
_ Deita no chão!- Ela gritou e ajudou André a se deitar.
Tiros, muitos tiros, alguns atravessaram as janelas, destruíram os vidros, atingindo a parede feita de tijolos de cimento, facilmente perfurados pelas balas. O tiroteio já se estendia por mais de cinco minutos, era muito tempo para quem estava sob ameaça de morrer por uma bala perdida.
Um momento de silêncio. Depois, passos de alguém correndo e, em seguida, esta pessoa bateu com o corpo na porta, quando conseguiu abrir, André Luiz e Carolina viram Natalino se atirando ao chão, estava ensangüentado, mas vivo, André se arrastou até ele.
_ Tudo bem com você?
_ Os homens vão me matar!
_ Não vão.
                Mais alguns tiros na direção da porta, depois um policial entrou com a arma pronta, Natalino atirou contra ele e errou o tiro, o policial revidou e atingiu no peito do jovem. André gritou:
                _ Pára, pára, chega!
                O policial parou e sentiu que não havia mais perigo. Sua vítima estava desacordada.
                André, com esforço, colocou-se sentado, tomou o celular e ligou para o Corpo de Bombeiros, solicitando resgate para o ferido. Outros policiais entraram no escritório. A situação foi se acalmando. Os policiais contaram que Natalino fora pego em flagrante com mais dois comparsas num assalto à mão armada, na fuga, eles atiraram contra a viatura, houve reação dos policiais, Natalino era quem dirigia o carro, ele veio para a ONG, na troca de tiros ali em frente, todos os três foram atingidos.
                Carolina estava em estado de choque, nunca participara de uma troca de tiros, nunca vira um homem ensangüentado na sua frente e nem tantos policiais armados assim.
                Naqueles dez minutos de espera até a chegada do resgate, André se pôs ao lado do rapaz.
                _ Não morre ainda, rapaz, agüenta firme, o resgate está chegando.
                Natalino virou o rosto num grande esforço, pois sentia muita dor, perdia sangue e mal se movia. André Luiz não se mostrava nada chocado, ao contrário, mantinha-se tranqüilo, apenas pediu-lhe que não fizesse esforço desnecessário. O resgate chegou. Levaram o rapaz para um hospital. Talvez ele sobrevivesse, mas sua situação era gravíssima.
            Carolina acompanhou a maca que o levava até o resgate, uma multidão de curiosos cercava o prédio, ela viu os corpos dos comparsas do rapaz sendo recolhidos em caixões de plástico, compreendeu que eles já estavam mortos, havia muitos carros de polícia, com sinalizadores no alto piscando insistentes. Ela viu os bombeiros o levando, sem esperança de revê-lo.
Os policiais orientaram André e Carolina sobre o quê deveriam fazer, haveria alguns depoimentos, visitas à delegacia e outras coisas, depois, retiraram-se da ONG.
            Ao entrar, enquanto ajudava a colocar as coisas em ordem, Carolina contou ao André Luiz que o Natalino estava no assalto à ONG.
_ Eu sabia.
            _ Como?
            _ Eu vi o rosto dele naquela noite, eu estava com uma lanterna, e o vi. Depois, na primeira vez que ele entrou aqui, eu o reconheci.
            _ E não fez nada?
            _ O quê faria e por quê faria alguma coisa?
            _ Sei lá, diria para a polícia.
            _ Quando ele voltou, era outra a sua intenção.
            E André não quis explicar mais nada.