Os sinos da Igreja Matriz badalaram no horário costumeiro das dezoito horas, talvez eu não pudesse afirmar com certeza se aquele era o costume, pois era a primeira vez que eu estava naquela pacata cidade do interior, mas eu imaginava ser aquele o costume, uma vez que as tradições das pequenas cidades são mantidas, enquanto o tempo destrói toda a tradição das capitais.
Eu estava cansado e da janela do hotel em que me hospedara, podia avistar toda a praça central. Se, naquele momento eu tivesse noção do movimento que fazia à noite, teria ido para outro hotel. Imaginava que ali fosse mais pacato, mas o bar do outro lado era muito freqüentado à noite, especialmente depois das nove e meia. Muita gente e muito barulho. Impossível seria dormir.
Deitei-me na cama e aguardei Gema terminar o seu banho. Não acreditava que estava ali com ela, nós dois, finalmente, juntos, um sonho adolescente num homem de quase trinta anos. E tanta coisa se passou desde que há conheci que perderia muito tempo a descrever. A televisão transmitia qualquer coisa que não me interessava, algo sobre guerra que os Estados Unidos queriam travar contra um país perdido na Ásia e, portanto, desliguei-a. Passei a observar o cubo em que estava. Obviamente, a cama se localizava no centro, era de madeira com ornamentos que denunciavam o seu tempo de vida. Lençóis brancos, convenientes para qualquer situação, procuravam demonstrar o quão limpo era o estabelecimento. A televisão nova em cima de uma pequena estante, onde, para economizar espaço, embaixo dela localizava-se o frigobar, do qual não se podia tirar uma bebida sem atrapalhar o outro espectador.
E, enquanto aguardava, senti o peso de dirigir muito e de ir à cachoeira com a minha musa, cansado, aliviado, lavado, perfumado, em paz com o mundo, veio o sono e cochilei um pouco por causa da demora. Era um cochilo em que ouvia todos os ruídos do banheiro e imaginava aquela bela mulher em seus embelezamentos, importantes para ela como para toda mulher, mas totalmente desnecessários para o animal bruto e sem refinamento que eu era. Eu não tinha muita noção da importância que as mulheres dão para a cor da lingerie ou para o perfume que usam num momento destes.
Acordei com o barulho da porta se fechando, olhei para a porta do banheiro, mas não era aquela que se fechara, era a do apartamento. Sobressaltado, pulei da cama e me vesti rápido, já que estava nu embaixo dos lençóis. Vestido e calçado saí do quarto e me surpreendi com a porta trancada. Gema saíra e me trancara, não consegui entender tal ato e levei um tempo para raciocinar melhor, fui à janela e olhei a rua, via-a atravessando a praça, sumindo ao entrar por uma rua. Tentei controlar-me pensando que ela saíra para comprar alguma coisa que achava importante, talvez ela não quisera acordar-me. Resolvi aguardar, mas, ao mesmo tempo, pensava em um milhão de modos de sair dali. Despi-me novamente e deitei-me, liguei a tevê e pus na novela, queria acalmar-me. Claro que não consegui, pensando naquela mulher que saíra. Lembrei-me de poder chamar o serviço de quarto e pedir que me abrissem a porta caso demorasse muito. Pensei que o melhor era esperar e relaxei quando vi todos os meus documentos em ordem: dinheiro, cheques, cartões, tudo certo. Se ela tivesse ido embora, pelo menos eu poderia ir embora também sem problemas. Aguardei. E cochilei novamente.
Uns cabelos longos e negros roçaram o meu peito, acompanhados de mãos macias e um beijo, despertando-me como se eu fosse um príncipe a receber uma bela mulher. Era Gema que voltara cerca de uma hora e meia depois, sussurrando, ousei perguntar-lhe:
_ Onde você foi?
_ Procurei uma farmácia, queria comprar um batom novo.
Eu não queria saber de mais nada, ela era linda e estava toda nua a me acariciar com todo o seu corpo macio de vinte e poucos anos, entreguei-me totalmente ao momento, deliciei-me, abusamos do prazer sensual, liberado, inconseqüente seria se os acontecimentos futuros não me trouxessem os problemas que vieram. Antes até ela tivesse engravidado e viéssemos a nos casar, mas não foi assim que aconteceu.
Estávamos lavados de corpo e alma. Satisfeito, não sentindo mais cansaço algum, pois o sexo me trouxera energias extras, atirei-me à cama e lhe perguntei:
_ Vamos sair para jantar?
Ela ainda estava nua e sentou-se, seus cabelos agora caíam pelos ombros, estava de costas para mim, beijei seus ombros e acariciei os seus braços, não pude resistir e fui beijando seu pescoço, seu rosto macio até a boca, após o beijo demorado, ela se afastou e se levantou, disse que queria vestir-se, eu fiquei observando todos os seus movimentos, todos os ângulos que seu corpo formava naquela tarefa de retirar as roupas que usaria da mala, vestiu-se e desapareceu no banheiro para se maquiar.
Eu delirava.
Depois, vesti minhas roupas num ritual nada charmoso.
Jantamos num pequeno restaurante, ao lado do bar freqüentado pela moçada da cidade, ficamos conversando toda a sorte de ingenuidades, namoramos, ficamos ali dando bobeira. Era gostoso, o clima serrano fresco nos juntava mais.
Ao voltar para o hotel, imaginei que o porteiro olhara de uma maneira estranha para Gema, não a mediu dos pés à cabeça, nem a olhou como quem a desejasse, apenas olhou sem qualquer sentimento ou sensação e isso me deixou intrigado. Para mim, apaixonado como estava, era impossível que alguém olhasse para ela sem demonstrar qualquer tipo de emoção. Se fosse homem, sem dúvida a desejaria como mulher, se fosse mulher, olharia com aquela indiferença forçada porque, na verdade, estaria com ciúmes. Talvez o porteiro fosse homossexual, mas, se fosse este o caso, olharia com admiração e talvez quisesse imitá-la, copiar o seu jeito. Mas aquele porteiro praticamente não a viu, olhou-a por míseros segundos e de uma estranha maneira. Tudo bem, subimos ao quarto e eu não queria ficar pensando num porteiro quando tinha à minha disposição a mulher mais linda do mundo.
No quarto, voltamos a fazer amor, já passava de uma da manhã e, quando acabamos, o barulho exagerado do pessoal no bar do outro lado da praça fez com que eu retornasse do paraíso e caísse na terra, naquele momento eu queria dormir e não conseguia. Olhei para a minha namorada e ela estava dormindo tranqüilamente, um anjo, coberta pelos lençóis daquele hotel simples.
Aos poucos, o barulho diminuiu e acabei adormecendo, talvez quando já passasse de duas da manhã. Caí num sono pesado por umas três horas, não me lembro direito, mas, num determinado horário, durante a madrugada, acordei levemente, ou não acordei, talvez tenha ficado com o sono mais leve e percebi que Gema não estava do meu lado na cama, não ouvi nenhum barulho vindo do banheiro, mas eu estava tão sonolento e cansado que não consegui levantar-me da cama para ver se ela estava no apartamento ou não. Voltei a dormir.
Só acordei quando o sol forte esquentou bastante a minha cama e o calor tornou insuportável continuar ali deitado, olhei o relógio, dez e meia da manhã de um domingo gostoso, surgiu ao meu lado a minha bela, beijando-me carinhosamente, passando a sua mão no meu tórax, ela já estava vestida com uma bermuda e uma camiseta.
_ Bom dia, meu gato!
_ Bom dia! Minha linda!
Acariciei as suas pernas magras e bem depiladas, lisas, levantei-me, fui ao banheiro, fechei a porta para fazer minhas necessidades, mas não a tranquei. Queria deixar a possibilidade dela ser aberta pela minha paixão quando eu estivesse no banho que tomaria depois de fazer a barba. Entrei embaixo do chuveiro e reparei na curiosidade daquela janela do banheiro, que era baixa para mim, pois eu conseguia ver por ela toda a rua lateral ao hotel. Depois do banho, enquanto me trocava, vi as roupas íntimas dela penduradas. Pensei naqueles loucos que roubam calcinhas das suas amantes. Eu não era assim.
No tempo que fiquei no banheiro, imaginei que Gema estava assistindo televisão, mas, quando saí, lá estava ela em cima da cama, lendo revistas.
_ Vamos descer? Já é quase hora do almoço, podíamos caminhar até uma hora da tarde e depois almoçar.
Aceitei de pronto a sua idéia. Ela desceu com a revista na mão, dizendo-me que, se parássemos na praça, ela poderia lê-la sentada no banco. Mas não paramos na praça, andamos pelos quarteirões centrais da cidade, olhamos algumas vitrines, de repente, Gema deu-se conta de que esquecera a revista em algum lugar, pois não a trazia mais consigo.
_ Ih! Acho que deixei a revista em alguma loja!
_ Era importante? Quer voltar para procurá-la?
_ Não, acho que não era importante, era uma revista de fofocas da semana, amanhã ela já não vale mais nada! Vamos continuar passeando.
Depois daquele passeio, almoçamos num restaurante pequeno e com poucos fregueses, muito agradável, servia uma boa comida mineira, com muita lingüiça, tutu de feijão e outros pratos. Comi bem. Percebi Gema um pouco quieta, ainda passeamos um pouco mais e retornamos ao hotel, onde arrumamos as nossas malas e nos preparamos para a viagem de volta. Estávamos a apenas cem quilômetros de nossa cidade e o retorno prometia ser tranqüilo.
Eu costumava passear muito com Gema apesar de não sermos namorados, éramos apenas bons amigos e amantes e eu não levava este relacionamento com intenção de casamento ou de juntarmos. Para mim era ótimo, vivia com meus pais e ela vivia sozinha num apartamento alugado no centro, em um prédio enorme, com mais de duzentos pequenos apartamentos de trinta metros quadrados. Nós nos telefonávamos marcando encontro, ela nunca me telefonava, sempre era eu quem a procurava, e isto me deixava um pouco chateado. Às vezes eu a visitava e, nestas ocasiões, sempre rolava um pouco de carinho e de carícias, um pouco de sexo. Uma noite, ela me confidenciou, com um olhar um pouco triste.
_ Sabe, Décio, estou com um problema e queria saber se você pode me ajudar...
Sua fala era mansa e preocupada, seu olhar era baixo, como quem não quisesse pedir minha ajuda.
_ Não sei, talvez eu possa ajudá-la, qual é o problema.
_ Falta de dinheiro, estou apertada demais, meu salário não sobe há tanto tempo e meu pai, sabe, o meu pai, que mora lá no Paraná, aposentou-se e me telefonou dizendo que o dinheiro da aposentadoria é pequeno, não pode mais me ajudar, sabe, é ele que paga o aluguel...
_ Nossa, que situação...
Quando se trata de dinheiro, todo mundo tem pena e tem medo de colaborar, porque não quer ser passado para trás e nem enganado, ela continuou.
_ Se eu não conseguir um pouco mais de dinheiro, terei que trancar a faculdade e voltar para o Paraná, voltar a morar na casa do meu pai e arrumar um emprego por lá.
_ E o que você gostaria que eu fizesse para ajudá-la.
_ Talvez...
Ela fazia um jeito de quem não queria incomodar.
_ ... não, acho melhor não te pedir nada, não queria que o nosso relacionamento ficasse com um compromisso financeiro no meio, é tão gostoso ficar com você, tenho medo que você pense mal de mim.
Eu já estava bastante envolvido e na minha cabeça passava um monte de idéias, desde o prejuízo que isto me causaria até a perda de Gema, fato que eu não queria. Se o aluguel não fosse caro, eu me disporia a falar, mas ela não queria me dizer nada, então eu me adiantei.
_ Quanto é o aluguel daqui?
_ Quinhentos reais por mês.
Veio uma resposta ligeira, como se ela esperasse a pergunta. Fiz uma série de cálculos mentais, pensei nas coisas com que gastava e, percebi que eu não ganhava tão mal, meu salário atual era de três mil e quinhentos reais por mês, pensei que poderia fazer um acordo com ela e lhe disse.
_ Você acha que se eu lhe ajudar com metade do aluguel, você consegue pagar suas contas e se manter aqui?
_ Metade do aluguel já ajuda bastante, será que podia ser um pouco mais?
_ Acho que posso dispor de trezentos e cinqüenta reais.
_ Que bom!
Ela me deu um beijo estalado na boca, abraçou-me feliz por um bom tempo e me fez cócegas, jogando-me na cama de casal. Entrei na brincadeira e, pouco depois, estávamos fazendo amor de uma maneira bem gostosa e alegre, uma ou duas vezes por semana que eu a visitava era gostoso e me mantinha sempre de alto astral.
Pelo ano inteiro que se seguiu, ficamos assim, eu sempre a visitava e ela estava sempre alegre, contava-me seus planos, falava da faculdade, às vezes, combinávamos uma viagem para o fim de semana, mas não era em todo fim de semana, geralmente, uma ou duas vezes por mês, por dois motivos, um que eu não tinha dinheiro suficiente para bancar viagem todo fim de semana, outro que ela precisava visitar a mãe, que morava longe, lá no Paraná, numa pequena cidade chamada Wenceslau Brás, que eu nunca conheci, nunca a acompanhei porque ela dizia que a mãe nunca entenderia a filha viajando sozinha com um namorado, segundo ela, sua mãe era muito antiquada. Seu pai, então, era pior, e ela morava longe dele porque tinha medo de apanhar, dizia que era um homem muito violento e, quando os visitava, trancava a porta do quarto de dormir de tanto medo que tinha.
Eu acreditava e ficava na boa, mas um dia o Edgard, era sempre ele, não sei o quê tinha esse cara, que já havia falado umas boas para o Dirceu, o mesmo que morreu de medo de transar com a Suzana, porque era casado e não queria trair a mulher, o Edgard atormentava o Dirceu e começou a me atormentar também, mas, no meu caso, era porque eu transava com a Gema, acho que ele tinha inveja e me falava para ficar de olho nela. Pois é, um dia, o Edgard me disse que foi viajar com sua mulher para o Paraná, foram visitar a Ilha do Mel, e me contou de um caso muito interessante que aconteceu lá, de um cara que umas meninas tinham pregado uma peça, deixando-o nu na praia, levando todas as roupas dele embora, ele teve que voltar pelado para a pousada. A ilha, pequena, e cheia de turistas, tinha um canal de comunicação boca a boca incrível e, na manhã seguinte, todo mundo sabia quem era o coitado e o que tinha acontecido. O mais interessante não era isto, era que uma das meninas era a cara da Gema, o Edgard disse que a cumprimentou, mas ela não o reconheceu, então, perguntou-lhe se o seu nome era Gema, ela disse que não, que era Teresa.
Fiquei encafifado com aquela história e, na noite de terça-feira mesmo, quando fui na casa da Gema, perguntei-lhe sobre o assunto, ela me disse:
_ Acho que ele encontrou minha prima, que é a minha cara.
_ Você tem uma prima que é parecida com você?
_ Tenho, vou te mostrar uma foto dela.
Realmente, ela me mostrou uma foto em que haviam duas Gemas, eu não saberia dizer quem era quem ali, de tanta semelhança, perguntei-lhe até se elas não eram irmãs gêmeas.
_ Todo mundo diz isso, acham que nós somos gêmeas, mas ela é só minha prima, é a Teresa. Coincidência este seu amigo encontrar com ela lá na Ilha do Mel, aliás, você já foi lá?
_ Não.
_ Precisamos ir lá qualquer dia.
_ É, precisamos.
Contei aquilo para o Edgard e ele, ainda assim, não ficou convencido, para mim, tanto fazia, o fato é que eu estava de bem com aquela deusa em forma de mulher, cada dia mais linda e exuberante, estávamos tão bem, que eu nem liguei muito quando ela me disse que o aluguel tinha aumentado, continuei pagando porque eu já me sentia bastante vinculado a ela e pensava até em me casar, queria muito ficar com ela o resto de minha vida. Uma noite, depois de uns meses guardando algum dinheiro, comprei-lhe um par de alianças de ouro, com um pequeno diamante encravado, mandei gravar os nossos nomes e decidi pedi-la em casamento.
Foi num dia dos namorados, levei-a para jantar no Pelicano, quando a peguei no apartamento ela estava mais exuberante do que nunca, com um vestido vermelho colado naquele corpo perfeito, com os cabelos negros brilhando, aquele rosto perfeito, e de salto alto que a modelava, eu vivia apaixonado por ela, por onde passamos naquela noite, ela chamava a atenção de todos os homens e mulheres. Os homens por deslumbramento, as mulheres por despeito. Fato é que as pessoas daquele restaurante chique, com vista panorâmica, pararam para vê-la entrar, por um momento, parecia que todos se congelaram à sua passagem.
Os queixos dos homens caíam, as flores murchavam e as estrelas se apagavam à sua passagem, o garçom nos arrumou a melhor mesa disponível com vista panorâmica, nós jantamos, ela parecia um pouco distante naquela noite, conversamos algumas coisas. Depois do jantar e da sobremesa de sorvete de chocolate e rum, ela foi ao banheiro, novamente eu vi os homens todos delirando e me senti o melhor de todos os homens, porque eu estava com ela. Quando ela voltou, encontrou a caixinha com as alianças, ao abri-la, seus olhos brilharam! Eu a pedi em casamento e ela aceitou, com a ressalva de que marcássemos para depois que ela terminasse a faculdade.
Então, na sexta-feira passada, eu cheguei aqui para encontrá-la e ela não estava, liguei do meu celular no seu telefone, eu o ouvia tocar e ninguém o atendia, depois, liguei no telefone celular dela e deu na caixa postal, eu não havia trazido a minha chave, voltei para a minha casa, peguei a minha chave, voltei e abri este apartamento, fiquei estupefato, estava vazio, não havia nenhum móvel, nenhum objeto, o chão estava sujo, como se ela tivesse se mudado e não houvesse me avisado. Havia alguns papéis espalhados, olhei-os, mas eram todos sem importância. Desci, falei com o porteiro e ele não sabia de nada, apenas que o porteiro da noite lhe dissera que a Gema fora embora sozinha. Voltei para cá e me deitei no chão do apartamento, de tanto pensar no que poderia ter acontecido, achei que ela ainda pudesse voltar, e fiquei esperando deitado aqui no chão, imóvel, incapacitado de tomar qualquer atitude, transtornado e letárgico, até que você veio e me acordou.
_ Esta é a minha história até aqui!
Décio olhou no relógio.
_ E pelos meus cálculos, estou aqui desde as sete da noite de sexta-feira, agora são dez da manhã de segunda, então são trinta e nove horas aguardando que Gema volte de algum lugar, e, agora, você chegou.
Décio estava com a barba por fazer, seu aspecto era terrível, estava acabado, cansado, abatido, desfeito, abandonado.
O homem que chegara tinha vindo de manhã para encontrar com a Gema e acabara encontrando o Décio, este acabara de explicar-lhe o que fazia ali, então, ele lhe disse:
_ A minha história é quase igual à sua, à exceção de que estou chegando agora para encontrá-la.
_ Você também pagava o aluguel dela?
_ Não, mas eu lhe pagava a faculdade de Psicologia.
_ Psicologia? Ela me dizia que fazia Letras.
_ Para mim, ela dizia que fazia Psicologia.
_ Então, não era nenhuma faculdade. Como é o seu nome?
_ Arlindo.
_ Prazer, Décio. Pois é, acho que fomos enganados.
Então, foi a vez de Arlindo contar a história dele, era igual em muitos detalhes, mas, como ele trabalhava em terceiro turno, só se encontrava com a Gema à tarde, entre três e sete horas, porque às oito tinha que estar na fábrica em Taubaté. Ele era engenheiro eletrônico de manutenção. Conhecera Gema no shopping, numa tarde de terça-feira, logo depois do almoço, viu-a tomando sorvete, sozinha, não resistiu e sentou-se ao lado dela para conversar, a princípio, ela não lhe deu muita bola, na outra semana, encontrou-a novamente no shopping passeando. Criou coragem e falou com ela de novo, trocaram telefones e em pouco tempo estavam juntos. Também pretendia casar-se com ela, que também aceitara para depois que terminasse a faculdade, que também ganhara um anel de ouro com diamante dele por ocasião do dia dos namorados, coincidência incrível ou sugestão dela, que dizia ter o desejo de ganhar um anel daqueles sempre que eles passavam em frente à joalheria. Os homens ficaram em dúvida. Por acaso, ele tinha vindo aquele dia de manhã, porque acabara de sair da fábrica e pensou em lhe fazer uma surpresa e convidá-la para almoçar, já que teria folga naquele dia e só voltaria para a fábrica no outro dia às oito.
Ficaram os dois conversando sobre a Gema.
_ Ela ia com você para o sul de Minas?
_ Não, a gente gostava de ir para Itatiaia.
_ Lá é legal também!
_ E como você a conheceu.
_ Eu nunca me esquecerei de quando a vi pela primeira vez, ela estava numa danceteria, num sábado à noite, dançando no meio das pessoas, de vestido branco, sabe aquelas luzes que fazem tudo o que é branco se destacar? Então, ela se destacava, era como se estivesse sozinha, de repente, ela me olhou, eu já estava babando há alguns minutos por ela, naquela hora, trocamos olhares, depois fui dançar ao lado dela e depois de um tempo, fomos ao bar e ficamos bebendo e jogando conversa fora.
Aos poucos, iam conhecendo-se e se tornando amigos na desgraça que lhes havia acontecido. Foram colocando as suas vidas em revisão durante todo o tempo, como se estivessem num palco e, de maneira teatral, contavam suas alegrias e tristezas, repassaram os pontos ruins da própria vida, suas apreensões juvenis, os problemas com os pais, Arlindo confessou que já havia experimentado algumas drogas mas escapou de se viciar, Décio falou dos problemas que teve com o pai, e, de tanto contarem as próprias histórias, nasceu uma amizade muito curiosa de uma desgraça comum que colocaria outros homens como rivais, e estes, ao fim de algum tempo, já a tratavam como falecida, pois, mesmo que ela voltasse, não tinham mais vontade de ficar com ela, pois saberiam que foram traídos, um pelo outro e os dois pela Gema.
_ Ei, que horas são?
_ Nove horas da noite.
_ Vamos chamar uma pizza?
_ Vamos. Não estou a fim de ir embora, quero encontrar a falecida.
A pizza chegou, continuaram falando de Gema. Ficaram por ali e cada um dormiu num canto da quitinete.
Quando amanheceu, na terça-feira, resolveram que era hora de ir. Trocaram os telefones para o caso de alguém ter alguma notícia dela, deram uma última olhada no que ficou e, enquanto trancavam a porta, surgiu um outro homem e lhes indagou.
_ Ei, o quê vocês estão fazendo aqui no apartamento da Gema?
Décio e Arlindo entreolharam-se e pensaram igualmente e falaram ao mesmo tempo.
_ Mais um!
_ Estamos indo embora, ela nos abandonou.
_ Ela não está aí? O que vocês fizeram com ela?
Nem pensaram em discutir com o visitante, Décio abriu a porta e lhe disse para ver o apartamento, ele viu tudo e não compreendia, mas, aos poucos, com a explicação dos dois, acabou se convencendo de que também fora enganado por ela. Neste momento, os três se encontravam dentro do apartamento.
_ Não acredito! Três anos inteiros! Também, eu só a via uma vez por mês!
_ Só uma vez por mês?
_ É, sou representante comercial, venho aqui para o Vale uma vez por mês, e ficava aqui na casa dela, minha mulher não sabe de nada, não vão contar para ela, hein?
_ Pode ficar tranqüilo, nem tenho esta intenção. – disse Arlindo. Décio concordou, completando:
_ Nem sabemos quem é ela. Aliás, qual é o seu nome?
_ Manfredo.
_ Pois é, será que tem mais alguém enganado por ela?
_ Acho que não. Manfredo, só por curiosidade, você pagava alguma coisa dela, faculdade, aluguel, alguma coisa assim?
_ Bom, acho que posso dizer a verdade para vocês. Eu sou o dono deste apartamento, tudo o que tinha aqui era meu, menos a Gema, eu a conheci e a trouxe para morar aqui, ela era minha amante.
_ Você cobrava aluguel dela? – perguntou o Décio.
_ Não.
_ E ela estava em qual faculdade, Psicologia ou Letras? – perguntou Arlindo.
_ Que eu saiba, só tinha o segundo grau completo.
_ A família dela era do Paraná? – perguntou Décio.
_ Não, ela era de Marília. Eu também sou de lá. Ela morava perto da minha casa, a gente se conheceu e começou um relacionamento, mas eu já era casado. Então lhe propus de vir aqui para São José dos Campos, parecia uma boa idéia, é bem longe de Marília, é grande e tem umas faculdades perto, ninguém ia desconfiar, ela dizia que tinha arrumado um emprego, vinha trabalhar e estudar, a família dela nunca desconfiou de nada.
_ E você pagava alguma coisa dela?
_ Bom, a água, a luz e o telefone ficavam por minha conta, era um pequeno prejuízo que me trazia um grande prazer, ainda que fosse só uma vez por mês, às vezes eu vinha duas vezes, era só.
_ E você avisava antes que vinha?
_ Sim.
_ Então ela armava tudo, sabia quando um de nós ia chegar, sabia que nós nunca íamos nos encontrar – conformou-se Décio.
Os três homens estavam sentados no chão do apartamento, Décio olhava para baixo, Arlindo mirava a vista do prédio, centenas de apartamentos do lado de fora, tentava compreender como tudo isto acontecera. Manfredo rodou um pouco pelo apartamento, foi abrindo e fechando as portas do banheiro, olhou o gabinete, depois a cozinha, procurava algo, encontrou no armário dos produtos de limpeza.
_ Achei!
_ Os outros dois correram até ele.
_ O quê você achou? – perguntou Décio.
_ Uma garrafa de vodka, eu a comprei e bebia em alguma ocasião especial, alguém quer um gole? Está no final.
_ Manda ver.
Não tinham copos, Manfredo bebeu do gargalo e passou a garrafa para o Décio que tomou um bom gole, Arlindo não quis. Não gostava de beber. Aos poucos, Manfredo e Décio esvaziaram aquele final da garrafa e ficaram mais animados, de certa forma, sentiam-se como bons amigos, apesar de unidos pela traição da amada. Arlindo disse-lhes:
_ Eu quero encontrar a Gema, esteja onde ela estiver, isto não pode ficar assim, ela nos deve uma satisfação, o que ela fez não é correto, ela nos enganou este tempo todo, eu quero encontrá-la e lhe dizer tudo o que eu penso. Preciso vê-la nos olhos...
_ Calma, Arlindo – falou o Décio – Gema fez algo muito errado, mas não podemos encontrá-la, onde você vai? O nosso amigo aqui volta para Marília amanhã, ele pode ir na casa da mãe dela e perguntar por ela, depois ele nos dá uma notícia, o que você acha, Manfredo?
_ Claro, a mãe dela deve saber, melhor ainda, eu tenho o telefone da casa dela lá em Marília, vamos telefonar.
_ Qual é o número? – falou afobado o Arlindo que, dos três, era o mais inconformado, talvez porque não estivesse ligeiramente bêbado.
Manfredo abriu uma agenda eletrônica e começou a procurar entre os nomes da agenda, encontrou e o disse ao Arlindo, que estava com o telefone celular a postos, este discou e esperou que alguém atendesse:
_ Alô – ouviu uma voz de uma senhora do outro lado.
_ Alô, bom dia! Eu queria falar com a Gema.
_ Ela não está aqui não, ela não mora aqui, quer deixar algum recado?
_ Mas aí não é da casa da mãe dela?
_ É, mas ela mora em São José dos Campos. Você quem é?
_ Eu sou um amigo dela, faz um tempo que eu não a vejo e não sabia que ela tinha se mudado, a senhora tem o telefone dela de São José dos Campos?
_ Não tenho, ela não tem telefone lá, é sempre ela que me liga.
_ E o endereço? Eu podia mandar uma carta...
_ O endereço eu não dou não, eu não te conheço.
_ Tudo bem, obrigado. No final de semana que vem eu ligo de novo, se ela estiver aí, eu converso com ela.
_ Não quer deixar um recado?
_ Não, obrigado.
Depois, Arlindo se virou para os outros dois.
_ Ela não estava lá e a mãe dela não sabe dela.
_ Então, vamos fazer assim, o Manfredo vai para Marília e procura saber dela, a gente espera aqui e telefona para ele na semana que vem. Ele nos dá notícias e a gente decide o que fazer.
_ Não, Décio, eu quero saber dela logo, me dá o endereço dela em Marília, eu vou lá no fim de semana.
_ Se você for, eu te acompanho – comunicou Décio a Arlindo.
Manfredo pensou um pouco, demonstrando que estava em dúvida sobre ir atrás de Gema, disse aos dois:
_ Talvez esta seja a oportunidade de fazer uma coisa certa, claro que sempre gostei, mas, agora, outras coisas estão pesando... o dinheiro que eu gasto para manter este apartamento faz falta lá em casa, nasceu o meu segundo filho com a esposa oficial, tenho uma perspectiva de abrir um negócio usando o dinheiro da venda deste apartamento, estou com mais de trinta e cinco anos, se estas aventuras continuarem indefinidamente, vou correr muito risco, e algo me diz que agora é a oportunidade. Se não tomar uma atitude na minha vida agora, depois pode ser muito tarde.
Manfredo pensou também naqueles dois homens e lhes disse que, mesmo ele, quando tinha uns dez anos a menos, teve uma moça com quem queria casar-se e que também o deixou, o jeito foi diferente, ela lhe disse o que sentia, ele não queria entender, mas, no fim, o fato é um só, ela o deixara, depois que ele conheceu a sua atual esposa e começava a entender o quanto era importante estar mais assentado, mais calmo na vida. Sentia-se mais maduro, sentia-se mais motivado a mudar de vida, vinha pensando nisto há alguns meses e, aquela era a oportunidade.
Enfim, declarou aos colegas:
_ Eu não vou atrás dela!
Os outros ficaram surpresos, até aquele momento parecia haver um certo consenso de que era necessário saber do que aconteceu com a Gema.
_ Eu não vou atrás dela! E vou vender este apartamento e nem quero mais saber de nenhuma amante! Se vocês quiserem, que a procurem, cansei desta moça, nem toda beleza do mundo vale a humilhação que estamos passando, vocês que querem, vão atrás dela, para humilhar-se ainda mais!
_ Espera aí! – Retrucou Arlindo – Não é assim também! Quem é que está se humilhando?
_ Nós já fomos humilhados, esta moça nos usou, brincou com o que a gente sente e agora vocês ainda querem encontrá-la, eu estou fora! Toma. – Ele procurou um papel, procurou novamente na agenda eletrônica o telefone e o endereço da mãe de Gema, anotou-os no pedaço de papel e o entregou para Arlindo. – Quer? Vai atrás. Mas eu não ia. Tchau para vocês, foi um prazer conhecê-los, só que eu tenho que tocar a minha vida, que, aliás, é o que vocês deviam fazer também.
Décio titubeou. Agora já não tinha mais tanta certeza de que queria saber da Gema, talvez fosse melhor esquecer mesmo, tocar a vida pra frente, igual o Manfredo estava sugerindo e virar a página desta tristeza.
_ O, Arlindo, vamos dar um tempo, quem sabe ela telefona e nos dá uma explicação.
_ Não, cara, eu vou atrás dela, tô com o seu telefone, se eu descobrir, te ligo.
Décio viu Arlindo virar as costas e ir embora. Olhou para o Manfredo. Pensou. Olhou para o pequeno apartamento, foi até a janela, parou. Respirou fundo, vendo pela última vez aquela paisagem de prédios e ruas. Olhou para o Manfredo que o observava, esperando uma atitude. Ele tirou as chaves do bolso e as deu para o proprietário do apartamento.
_ Toma, Manfredo, desculpe por usar o seu apartamento sem saber, mas nós três fomos enganados por ela, que nos usou. E pensar que há tantas mulheres sobrando por aí...
_ Mas ela era muito linda... – completou Manfredo.
_ É muito linda! E sem caráter. Somando tudo o que ela nos roubou... talvez chegue nuns cinqüenta mil reais nestes dois ou três anos. Você não acha?
_ Acho que sim, dava pra comprar um apartamento por ela!
_ É, dava.
_ Pelo menos ela era linda e eu transei bastante com ela! – ainda se consolou o Décio. – Agora, é partir para outra! Tchau. Boa sorte!
_ Obrigado! Boa sorte para você também!
Décio passou pela porta e seguiu sempre direto até o elevador, do elevador para o carro e dali para a casa, onde explicou para os pais que esteve na casa da namorada, que ela havia sumido, que ele estava chateado e que precisava resolver o problema das faltas no emprego, precisava de um atestado médico, talvez o tio pudesse arrumar e coisas assim. Passou um bom tempo tentando esquecer a beleza de Gema.
Dois anos se passaram até que Décio recebeu a visita de um oficial de justiça que o chamava como testemunha num processo movido por Arlindo de Oliveira contra um tal de Alfredo e Genoveva de Martim. Não se lembrava daqueles nomes e, por acaso, o único Arlindo que conhecera fora aquele cara que estivera com ele no apartamento da Gema. Teria que comparecer numa audiência perante o juiz.
No dia da audiência, Décio vestiu seu terno e foi, queria estar bem apresentável. Chegando no Fórum, apresentou-se na sala do processo e aguardou ser chamado pelo bedel. Logo entrou e viu os litigantes, de um lado, Arlindo, de outro, Gema e Manfredo.
Passou pelo corredor central para dirigir-se até a sua cadeira para fazer suas declarações, olhou com admiração para a Gema, que continuava linda e Manfredo, então eles estavam juntos ali, ele não compreendia.
O juiz perguntou-lhe:
_ Você conhece aquelas pessoas? – e apontou para Gema e Manfredo.
_ Sim, são a Gema e o Manfredo.
_ Conte-nos o que sabe deles.
E Décio contou sua história.
E descobriu, enfim, que os dois eram estelionatários, que já haviam aplicado o golpe da namorada sem dinheiro em cinco cidades diferentes, e que o golpe consistia em fazer com que Gema conhecesse dois ou três rapazes e os seduzisse de tal forma, que eles acabavam por pagar várias contas inexistentes para ela, ela ia juntando este dinheiro até que formasse um bom pé-de-meia, depois, davam o fora da cidade e iam para outra. Já tinham aplicado o golpe em São José dos Campos, Campinas, Ribeirão Preto, Botucatu e São Paulo. Juntos, parece que haviam conseguido juntar quase quinhentos mil reais. Manfredo, que na verdade era Alfredo, era o marido da Gema, que se chamava Genoveva. Décio não ficara sabendo de nada porque o juiz proibiu qualquer um dos litigantes de entrar em contato com ele antes da audiência, para que não sofresse qualquer influência deles e para que confirmasse a tese de uso de nomes falsos e falsas identidades. Os dois estavam respondendo por crime de estelionato e formação de quadrilha, além de que o Arlindo estava querendo a devolução de todos os gastos que ele fizera com a Gema.
E depois da audiência, Décio ouviu Arlindo.
_ Eu fui atrás da Gema e nunca a encontrava, aquele endereço em Marília era falso, o telefone também. A senhora que atendia o telefone recebera um pedido do Alfredo para dizer que, se alguém perguntasse por Gema, que ela dissesse que ela morava em São José dos Campos e era para deixar recado que ela daria para o Alfredo mesmo. Então, corri atrás da história do apartamento, que era dele e ele mesmo vendera, fui no cartório de registro de imóveis e descobri que ele se chamava Alfredo e não Manfredo, aí comecei a procurá-lo porque fiquei desconfiado de algo errado, fui seguindo os endereços dele no contrato e fui fazendo contatos e mais contatos até que descobri que ele morava com a Genoveva, aí eu descobri tudo e entrei com este processo. Peguei os dois de jeito.
Arlindo tinha os olhos brilhando de ódio. E de satisfação ao contar sua história e mostrar em detalhes como conseguira encontrá-los e denunciar a farsa. Era como se precisasse disso para satisfazer um desejo próprio de vingança, era isso, desejava apenas vingar-se e Décio pensou em como um coração apaixonado podia tornar-se um coração vingativo.
Décio se lembrou do quanto ele ficara inconformado e não conseguiu imaginar o quão longe ele chegaria. Mas imaginou que, se o amigo ganhasse o processo, ele também poderia recuperar alguma coisa do que perdera. Menos aquele amor, que era o que mais lhe fazia falta. Difícil foi rever Gema. O coração disparou de nervosismo, aquela mulher ainda o fazia tremer. E contar toda a história para o juiz, e saber que, assim, estava incriminando-a ainda mais. Aquilo destruía o coração e o juízo.
Melhor seria se ele nunca soubesse da verdade.