O ônibus entrou pela Avenida Dois do bairro e teve que passar devagar porque os artistas de um circo se apresentavam, chamando o povo da região para os espetáculos. As pessoas de dentro do coletivo divertiam-se ao ver aquela trupe de mambembes. Dois palhaços, um gordo e um magro, outros dois vestidos numa fantasia de burro, em que as pernas, dianteiras e traseiras, iam para lados diferentes, alegravam as crianças de pés descalços que jogavam bola na rua e pararam para ver a procissão. Trouxeram também um belo cavalo branco, enfeitado com plumas e adereços dourados, arrancando exclamações dos adultos que, dos portões das casas mal-acabadas, olhavam as evoluções que o treinador ensinara ao animal.
Ivani lavava as roupas do marido no tanque improvisado fora do caminhão. Dez anos depois da fuga com um dos trapezistas do circo ela estava voltando para a cidade natal, pensava em ir à casa dos pais, visitá-los, pois há três anos que não os via, desde que eles a visitaram quando o circo esteve na cidade vizinha, foram fazer as pazes, desculpar-se e desculpá-la, recuperar uma filha perdida, disseram que o padre lhes aconselhara. Ela sentiu-se aliviada e menos infeliz naquela época e queria retribuir e matar as saudades da família, esperava ver também os irmãos.
Se ela soubesse que a vida no circo seria tão dura, teria freiado a paixão e ido embora para casa no dia em que se deslumbrou com aquele trapezista bonito, de corpo moldado pelos exercícios diários, e de longos cabelos negros. Ela não deveria ficar no circo para vê-lo depois daquela matinê. Ele a viu e veio conversar com ela depois do espetáculo, ficaram juntos até tarde da noite. O circo ficou duas semanas e ela foi todos os dias, depois do espetáculo, namorar o trapezista. Quando o pai descobriu, foi uma grande confusão, brigaram feio, ele esbravejou, vociferou, praguejou, e não adiantou, quando o circo se mudou, ela foi junto e se casou com o artista.
Vida dura, cheia de dificuldades, todo mês mudando de lugar, às vezes, quando a cidade era grande e tinha público, ficavam mais de dois meses, às vezes, ficavam só uma semana. Ivani se surpreendeu com o tamanho da cidade natal e pensou que ficariam ali, no mínimo, por um mês. Ela pegou o balde e pendurou as roupas no varal montado entre estacas, depois foi ver o treino do marido. Ele continuava o mesmo, atlético e belo do jeito que era quando o conheceu, mas ela tinha mudado muito, não era mais aquela rapariga esbelta, o corpo tinha transformado-se, agora cuidava da filha de cinco anos, ajudava nos afazeres diários e detestava a companheira de trapézio do Jurandir. Achava que ela estava dando em cima dele, receava que tivessem um caso e que fosse traída.
Ivani desceu no ponto de ônibus, caminhou alguns metros. O bairro era pobre, as casas envelhecidas não eram muito bem mantidas, disse à filha, que a acompanhava, que ela tinha crescido naquele bairro. Entraram por uma rua de paralelepípedos, casas pequenas, casas carentes, até parar em frente ao número 36. Havia uma escada com cerca de vinte degraus vencendo o desnível da rua e do morro baixo. Ela olhou bem e reconheceu que tudo estava como fora há dez anos, o portão de ferro pintado de branco necessitando de outra mão de tinta, a escada, o abrigo para o carro, as janelas de beiral de madeira pintadas de azul, as paredes de bege. O alpendre de piso de caco de cerâmica. E flores pequenas no jardim, onze-horas, margaridas, mariquitas, como sempre bem cuidadas. Lembrou-se de seu tempo de criança, dos brinquedos e brincadeiras com os irmãos, com as primas, com as amigas. Parecia ver a rua cheia de crianças como era naquele tempo e viu, por um instante, o pai ainda moço chegando do trabalho, ela vinha correndo, sempre a primeira a receber o seu abraço, depois, vinham os irmãos, todos disputando a atenção do pai.
_ Ivani, minha filha, que surpresa! – disse-lhe a mãe abrindo um sorriso imenso ao vê-la na porta – E trouxe a Camila!
_ Quem chegou?
_ Pai! Sou eu, Ivani!
O pai veio andando devagar porque as pernas não lhe permitiam mais correr, abraçou a filha e chorou de alegria.
_ Minha filha! Que saudades! E esta menina? É minha neta? Camila?
_ É, pai!
_ Como está grande e bonita! – e sentou-se no sofá para abraçar a neta.
Enquanto conversavam, ela deixou a filha circular pela casa com a avó, Ivani via que tudo estava do mesmo jeito, parecia que tinha saído ontem à tarde, mas dez anos tinham passado. O tempo tratou de envelhecer os objetos da casa simples e aconchegante, o pai se aposentou e cuidava do que podia. O reencontro com o passado apertou o seu coração, mas também era muito agradável estar lá.
_ Cadê o João e o Sílvio?
_ Eles se casaram, cada um mora na sua casa, agora! – respondeu-lhe a mãe- O João tem uma filhinha linda!
Fotos antigas e recentes. Os santos na geladeira. Os quartos arrumados com capricho pela mãe, estavam perfeitos. Tudo no mesmo lugar, o passado estava ali e ela queria que fosse o presente, no fundo do coração, ainda sentia um certo remorso por ter saído daquele jeito. Aproveitou um momento em que a mãe levara a neta para a cozinha e entrou no seu antigo quarto, sentou-se na sua cama, acariciou a colcha, como se quisesse experimentar a maciez, um pequeno criado-mudo ainda guardava um porta-retrato com uma foto sua de quando era adolescente, no baile de formatura de oitava série, tinha quinze anos, hoje tinha trinta e três, quanta saudade lhe tomou o peito, e a fez pensar em quando ela perdera aquele tempo, em quanto ela perdera ao abandonar tudo e fugir, o quanto ainda lhe doía tal decisão. Levantou-se com nostalgia, e abriu o pequeno armário de roupas que estava quase vazio. Averiguou por dentro, alguns cobertores, algumas caixas e o álbum de fotografias denunciando a sua distância, já que a última foto era de antes dela ir embora, e viu a foto do ex-noivo e se lembrou das brincadeiras de amor que se passaram naquele quarto, nunca chegaram até o fim, mas também nunca deixarem de namorar bastante.
O aroma do café feito na hora invadiu a casa e atraiu Ivani e seu pai à cozinha, onde estavam avó e neta.
_ Amanhã é sábado, o circo vai estrear, vocês querem ir? Eu trouxe quatro ingressos para vocês.
Sábado à tarde era dia de alegria e muito sol. Na enorme fila da bilheteria do circo, os palhaços circulavam, animando as crianças e tentando convencer os pais a comprar pequenos brinquedos para os filhos, uma caixa de som tocava marchinhas, ouvia-se a gritaria da criançada, ansiosa para assistir ao espetáculo. Aos poucos, os espectadores ajeitaram-se nas cadeiras, o espetáculo ia começar.
Um apresentador entrou e deu início ao entretenimento. Vieram adestradores de cavalos e de macacos, palhaços e equilibristas, as crianças estavam deslumbradas, espantavam-se com os leões, riam dos palhaços, assistiam a tudo com olhos que nem piscavam de tanto interesse e emoção. Houve um intervalo para que o público pudesse ir ao banheiro e levantar-se um pouco, momento em que o pessoal do circo aproveitava para vender refrigerantes, pipocas, guloseimas e brinquedos para adultos e crianças. Ivani ajudava nesta hora.
Devidamente vestida com o uniforme do circo, ela foi até a cozinha e pegou vários saquinhos de pipoca para colocar em sua bandeja e sair a vendê-los. Ao passar por trás do camarim do marido, olhou pela fresta da porta e viu o Jurandir beijando a companheira de trapézio. Parou, o sangue ferveu mas ela se controlou, apenas terminou de abrir a porta, ao ouvir o barulho, Jurandir se virou e viu a mulher, ficou quieto, a companheira de trapézio a olhou, ajeitou a roupa e saiu pela mesma porta, dizendo um “desculpe, foi mal”. Ivani quis chorar mas o peso de dez anos ajudando no circo a fez apenas olhar com desaprovação para o marido. Saiu para vender as pipocas com uma dor muito grande no coração, fingia rir para o público e vendia com vontade de jogar aquela bandeja toda na cara do Jurandir, pegar a filha e voltar para a casa dos pais.
Um dos pais gritou para a vendedora de pipocas:
_ Ei, moça, por favor, dá uma pipoca aqui para mim!
Ela se virou para entregar o pacote de pipoca e pegar o dinheiro, ele a reconheceu:
_ Ivani!
_ Mauro!
_ Quanto tempo!
_ É. – ela respondeu sem jeito. O Mauro também tinha mudado pouco, apenas uma calvície iniciante, um rosto de homem maduro com mais de trinta e cinco anos.
_ Uns dez anos! Então, é neste circo que você trabalha! Como você está? – ele perguntou.
_ Vou bem. E você?
_ Eu me casei, este aqui é o Guilherme, meu filho. Esta é a Rosa, minha mulher!
_ Muito prazer!
Ivani olhou para o menino. Reviu as crianças brincando na rua de sua casa, e pensou que poderia ser o filho dela, olhou para Rosa e pensou que ela poderia estar ali, no lugar dela, assistindo ao espetáculo em vez de viajar com o circo, poderia estar vivendo mais confortavelmente, igual a todo mundo, mas estava sofrendo naquela vida dura. Se ela soubesse! O coração, que já sofria com o Jurandir, não poderia ficar ali olhando o passado, doendo no presente e pensando no futuro.
_ Tchau, Mauro! – e saiu apressadamente, fugindo do passado, indo trabalhar distante daquele ponto da arquibancada, evitou mesmo olhar para trás, não conseguia suportar aquela dose de dor e a alegria no rosto do ex-noivo.
_ Tchau! Ivani!
_ Esta é a tal da Ivani? – perguntou-lhe Rosa.
_ Sim!
Mauro ficou com o coração sobressaltado, Ivani o abandonara quando eles estavam noivos para fugir com o trapezista daquele circo. Ficou pensando em como sofrera por causa disso, em como foi difícil aceitar o fato, quis correr atrás dela, ir atrás do circo, buscá-la à força. Chegou a fazer isto, encontrou-a, pediu que ela voltasse, ajoelhou-se, humilhou-se, mas ela disse que não queria, que gostava dele mas amava o trapezista. E eles tinham feito tantos planos juntos para o futuro, ter uma linda casa, filhos, viajar. Tudo se perdera e ele ficou jogado no abismo.
Até que ele conheceu Rosa e se casou com ela alguns anos depois. Manteve os planos, tendo trocado a protagonista. Terminou a faculdade, veio o filho, estava trabalhando, tinham uma casinha financiada e um carrinho velho, mas em bom estado e, agora, esperavam mais uma criança. Ele ficou olhando Ivani se distanciar, via o quanto ela mudara fisicamente, estava com mais volume, um rosto de quem estava cansada, um ar triste. Pensou que quase se casara com ela, lembrou-se de tantas promessas de amor, de tantas brincadeiras sensuais, de um namoro jovem e alegre, sentiu que a saudade era forte mas compreendeu, naquele instante, que tudo passou, a vida era outra, o passado tinha o seu lugar e nada mais iria trazê-lo de volta. Ele não conseguiu mais assistir ao espetáculo com atenção, ficou pensando na antiga noiva e no tempo que poderia ser outro. Entendeu o quanto ele tinha amadurecido com os acontecimentos e o quanto era feliz com a atual esposa, apesar daquela pontinha de tristeza de não ter se casado com a Ivani, que fora o grande e inesquecível amor da sua vida. Ele era feliz com Rosa, mas como poderia saber se teria sido muito mais feliz com a Ivani, pois ela era aquela mulher a quem ele desejou ser único, exclusivo, era um amor grande demais que estava perdido e que nunca mais seria recuperado, mesmo após aquele encontro, não havia mais o que fazer senão sofrer o que não houve, esquecê-la, o que era impossível, e ser feliz, como ele era, com o amor mais palpável, real e amigo que a Rosa lhe oferecia.
E Ivani ficou vendendo pipocas por muitos anos.